A fome redimida
Quem diria, hein, a fome que gerou cassações políticas hoje, redimida, lembrada, falada com ênfase e entusiasmo. Acha-se em evidência. Ela já não castiga. Breve deixará de existir, na promessa de certas autoridades. E quem desceu aos infernos, por criticá-la é conduzido a um lugar melhor. O que era tabu se transformou em voz corrente, […]
Quem diria, hein, a fome que gerou cassações políticas hoje, redimida, lembrada, falada com ênfase e entusiasmo. Acha-se em evidência. Ela já não castiga. Breve deixará de existir, na promessa de certas autoridades. E quem desceu aos infernos, por criticá-la é conduzido a um lugar melhor.
O que era tabu se transformou em voz corrente, voz do povo. E de repente o Brasil faz coro e sem medo de decepcionar, como a ter certeza do sucesso, grita: desta vez mataremos a danada. E sem piedade.
Tomara que o anúncio feito vire realidade. Ora, se promessa enchesse barriga o brasileiro viveria feliz. A saúde, a educação, a segurança, o salário mínimo e outros programas, complementariam o progresso social. A despeito do que o governo anuncia há séculos o slogan de Fome Zero seria um salto vantajoso. Melhor uma sopa que nada. Os lúmpens se transformaram em artigo de luxo da política.
Torcemos pelo sucesso das medidas, mas… Passado o entusiasmo qual o destino de tais promessas? Vergonha, decepção, desprezo. Tudo, então, não passa de um gosto amargo de comida estragada. Nada de pessimismo. Tudo dará certo, insistem. Trazemos ao público o episódio que envolveu o nome de um grande brasileiro Josué de Castro (1908-1973), castigado com o exílio ao falar da fome, honestamente. Este sim, um pioneiro e ninguém mais que ele se revelou tão interessado na solução do problema.
Certas verdades parecem absurdas, mas, infelizmente, acontece. Aquele pernambucano, médico, professor universitário, sociólogo, geógrafo, cientista social, embaixador do Brasil junto a ONU, em síntese, um Cidadão do Mundo, teve os direitos políticos cassados pela ditadura, por tratar de um assunto considerado proibido, a fome. De lá para cá ficou esquecido.
Submetido ao rigor da Inquisição viu-se condenado à prisão. Escapou do fogo e do inferno… A punição de Josué de Castro o motivo não foi diferente. Crime: ter ideias, pensar. Por assim fazê-lo pagou caro. Exílio. Ele retornou ao Brasil morto. O enterro, por ordem superior, discreto e sem a presença de fotógrafos e repórteres. Tanto medo por nada, a não ser pela assombração de Torquemada, o terrível inquisidor espanhol.
Escritor brilhante pelos argumentos, conquistou fama a partir de 1945, com a publicação do livro “Geografia da Fome”, considerado o mais famoso de sua produção. Mereceu tradução em vinte e cinco idiomas. Ao lado de “Geopolítica da fome” e “Homens e caranguejos” a consagração merecida. Hoje, quem o conhece?
Enquanto o alforje das obras, cerca de trinta, se tornavam leitura obrigatórias nas universidades estrangeiras, o meio intelectual brasileiro nada fez para tirá-lo do esquecimento. As novas gerações ignoram-lhe a rica biografia. A mídia insiste no erro ao preferir mediocridades.
Para o geógrafo, mais grave que a fome é vê-la se transformar em crônica, para afirmar: “Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome.” O aprendizado quem lucrou foi a Sorbonne (Universidade de Paris), onde ministrou aulas. Mesmo distante voltou o olhar para os mangues de Capibaribe, nos bairros miseráveis de Recife. Foram os olhos e as palavras que o engrandeceram. Sensibilizado com a miséria dos homens os comparou a seres anfíbios, “habitantes da água e da terra, meio homem e meio bichos, alimentados na infância com caldo de caranguejos.” Cedo se deu conta que as pessoas se assemelham aos crustáceos.
Os caranguejos do Recife como de São Luís constituem cena de um quadro doloroso. O mangue já não gera caranguejos, sim, caranguejadas, na mesa de rico.