Lourival Serejo

A memorialística de Alberto da Costa e Silva

Houve um tempo em que me dedicava, com mais atenção, à leitura de obras relativas às memórias de escritores. Desse período, retive algumas, como Fala, memória, de Nabolov; Origem, de Thomas Bernhard; A idade do serrote, de Murilo Mendes; Istambul, de Orhan Pamulk; Quase memória, de Cony; e Baú de ossos, de Pedro Nava. Toda […]

Houve um tempo em que me dedicava, com mais atenção, à leitura de obras relativas às memórias de escritores. Desse período, retive algumas, como Fala, memória, de Nabolov; Origem, de Thomas Bernhard; A idade do serrote, de Murilo Mendes; Istambul, de Orhan Pamulk; Quase memória, de Cony; e Baú de ossos, de Pedro Nava.

Toda minha simpatia por esse gênero começou com a leitura das Memórias, de Humberto de Campos, que tínhamos em nossa estante, lá em casa, e era a leitura comentada da família.

A autobiografia – hoje desviada para a metaficção – não é um gênero fácil para quem quer fazer literatura. Requer certa arte e a distância de quem escreve história.

A leitura de um bom livro de memórias dá um demorado prazer ao leitor. Foi o que senti ao ler as memórias de Alberto da Costa e Silva.

Conheci Alberto da Costa Silva em julho passado, quando visitei a Academia Brasileira de Letras. Numa cadeira de rodas, já não podia falar, nem tinha mobilidade nos membros. Era levado por uma cuidadora. Recolhi para mim a admiração que sentia por ele.

A sua recente morte trouxe-me à lembrança seus livros de memórias que li com muito interesse: Espelho do príncipe e Invenção do desenho.

Nessas duas obras, o autor revela-se um exímio memorialista, senhor da melhor técnica que conduz um escritor por essa ânsia de contar sua história de vida.

Curioso é que ambos os livros trazem o mesmo subtítulo: “ficções da memória.” Nesse detalhe está um alerta aos leitores de que na linha das memórias a realidade não é suficiente: sempre haverá um lugar para a ficção. Principalmente, quando as memórias se revelam como uma peça literária. Nessa técnica eleita pelo escritor está o segredo do fazer literário. Nem sempre há fidelidade em quem escreve memórias. Em Viver para contar, Garcia Márquez destaca: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda para contá-la.”

Em Espelho do príncipe o memorialista se transforma no “menino” – o protagonista das memórias que o narrador passa a discorrer.

Ali está o encadeamento de acontecimentos da família, do lugar, do país e do mundo porque o menino acompanhava tudo com atenção. Tudo começou em Fortaleza, onde morava o “menino”, para depois espalhar-se pelo Brasil e por Lisboa, onde serviu como diplomata, e pelo mundo.

Fora dos momentos em que a enxaqueca lhe retirava o desembaraço da idade, o mundo mágico do menino era tomado pelos livros. Leitor voraz, precocemente lia tudo que caía às mãos ou que lhe recomendava o pai, o grande poeta Da Costa e Silva. Em sua casa, dentro daquele espaço aberto da sala de leitura, “o sol batia nos jardins dos livros e era doce: não lhe cortava a pupila, como a do pátio da escola, da praia e da rua.”

Em Invenção do desenho, Alberto da Costa e Silva já assume a narrativa na primeira pessoa. Ao longo de sua leitura deparamo-nos com um bibliófilo autêntico, um idealista se preparando para entrar no Itamaraty, o poeta e o cidadão constantemente preocupados com os destinos políticos do país.

Nessas fases de sua vida já se percebe o seu interesse pelo estudo da África, onde ia com frequência em missão diplomática. Desses estudos resultou a sua substancial obra, como historiador e africanólogo, A enxada e a lança; seguindo-se de A Manilha e o Libambo: a África e a escravidão; Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o

Brasil na África; Das mãos do oleiro; Imagens da África; dentre outros livros e ensaios sobre o continente africano.

Surpreende-nos a leitura da Invenção do desenho quanto à profunda cultura literária e científica do autor e a extensão de seus relacionamentos com personalidades presentes no mundo literário e político, como Manuel Bandeira, Negrão de Lima, Antônio Carlos Villaça, Herberto Sales, Jorge de Lima, Guimarães Rosa, Jânio Quadros, Kubitschek, Miguel Torga, Frederico Schimidt e tantos outros. Como diplomata, o memorialista informa o leitor sobre os acontecimentos que marcaram o período em que passou em Lisboa e fazia constantes viagens pelo mundo, por onde conheceu Salazar, Amílcar de Castro, Agostinho Neto, Haile Selassie etc.

A leitura dos seus livros de memórias flui como um romance, o romance de uma vida dedicada às letras, à história, à diplomacia.

A prosa perfeita de Alberto da Costa e Silva é o resultado do seu envolvimento com os livros e o mundo literário. Há passagens, em seus livros, em que o poeta que foi – herança do pai – manifesta-se nas suas indagações e metafísicas em descrições tocantes que vão além da prosa.

Aproveito a invocação poética para fechar esta crônica quase ensaio sobre memórias, com este sussurro de Carlos Drummond:

E depois das memórias vem o tempo

Trazer novo sortimento de memórias.

Até que, fatigado te recusas

E não saibas se a vida é ou foi.

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