opinião

O milagre da ingratidão

Jefther Rocha- Psicólogo e professor universitário.

Opinião deste sábado (26). (Foto: Banca O Imparcial)

Em dezembro de 2022, ao pilotar minha moto e desviar de um buraco na Avenida dos Africanos, em São Luís, sofri um acidente de proporções gravíssimas. Consegui ser socorrido a tempo e foram quase 4 meses hospitalizado, entre cirurgias, procedimentos e intervenções variadas. Foi, com folga, o período mais difícil de minha vida – e por “difícil” estou utilizando um eufemismo proposital.

Em abril de 2023, quando finalmente saí do hospital, traumatizado física e psicologicamente por tudo que ocorrera, pela perspectiva do porvir e, dessa feita, sem tanta influência de medicamentos fortíssimos, pude me deparar com minha nova vida.

Cabe destacar que, curiosamente (ou não), após minha última cirurgia e duas semanas antes de minha alta hospitalar, desenvolvi um episódio depressivo agudo – coisa inédita em meu psiquismo mais afeito à ansiedade.

Uma frase que me foi repetida à exaustão sob a tentativa de consolo era “Não sofra. De mais longe você já veio. Agora tudo vai ficar bem!”. No princípio, confesso, servia de algum alento, mas muito rapidamente comecei a ser ríspido ao ouvi-la. E comecei, inclusive, a me questionar: Eu não deveria estar me sentindo bem?

Ora, eu conseguira passar por uma dezena de cirurgias, superara o risco real de paraplegia e, mesmo esteticamente, os estragos não foram tão acentuados quanto poderiam ser. Com sessões de fisioterapia e apoio psicoterapêutico, minhas perspectivas de andar e seguir com a vida eram certas. O médico, segundo meu pai, literalmente saiu emocionado de minha última cirurgia dizendo que presenciara “um milagre”.

E por que eu não me sentia como um? Por que eu não estava saltitando pelos campos como a Julie Andrews em A Noviça Rebelde agradecendo à vida e às pessoas pela nova oportunidade de viver ou mesmo retornar à rotina após minha reabilitação física?
Lembro de ter levado esses questionamentos em várias sessões de psicanálise, frustrado comigo mesmo e pela expectativa que eu mesmo colocara sob mim no pós-hospital: ao superar a pior desgraça que já me acontecera, em especial relativa a um agravo de saúde, eu não deveria estar completamente agradecido? Feliz? Pleno? Não é isso o que acontece às pessoas quando alcançam a cura de um câncer, o fim bem-sucedido de uma gravidez de risco?

É possível que seja. No meu caso, eu me deparei com uma série de pensamentos e sentimentos bem mais complexos e, com frequência, mais desagradáveis.

Eu descobri que estava muitíssimo grato. E muitíssimo ingrato. Que me sentia bastante aliviado. E também temeroso. Que eu era mais forte e corajoso do que eu jamais imaginara. E que também estava espantado com minha própria sombra.

A verdade é que me tem sido benéfico suspender um olhar moralista acerca do que eu deveria estar sentindo – e acredite, não demora muito para que as pessoas comecem a apontar o dedo para exigir demonstrações de gratidão: desde frequência nas idas à missa ao silenciamento indireto de reclamações cotidianas.

Me enxergar sob a mira do que é suposto que eu sinta e pense após um momento de sofrimento é me manter num acidente: o acidente tão comum de perder a própria consciência e sentido das coisas para a internalização de expectativas externas.

E quanto a isso, eu tenho me socorrido. Claro, aos poucos e respeitando a cicatrização das feridas. São aprendizados que tenho obtido e por eles eu sou muito grato.

E muito ingrato também!

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