Abismo Brasileiro
De todas as escolhas de Petra Costa para o documentário Democracia em Vertigem, lançado no último dia 19 pelo serviço de streaming do Netflix, fico com a câmera a guardar as costas de Dilma Rousseff, enquanto ela adentra corredores, salões e sorri para flashes, sob a narração do que foi, para ela, enfrentar a tortura. […]
De todas as escolhas de Petra Costa para o documentário Democracia em Vertigem, lançado no último dia 19 pelo serviço de streaming do Netflix, fico com a câmera a guardar as costas de Dilma Rousseff, enquanto ela adentra corredores, salões e sorri para flashes, sob a narração do que foi, para ela, enfrentar a tortura.
“A arte de resistir à tortura é pensar assim: É só mais um minuto. Porque se você pensar que é mais cinco, mais vinte, fica muito difícil de aguentar. Então você pensa: É mais um minuto, mais dois, e vai se enganando.” São os primeiros 15 minutos de filme. Avançados mais 5 minutos, durante uma conversa entre Dilma e a mãe da diretora, também perseguida durante a ditadura militar, descobrimos a saudade que a ex-presidente sente do anonimato que só era possível na clandestinidade.
Em seguida, Dilma confessa às lentes que não queria ser sucessora de Lula. E assim como a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa, a ex-guerrilheira precisa enfrentar de novo um tribunal durante o processo que a destituiu da presidência em 2016. Ao se defender do impeachment, ela diz ter visto a morte de perto por duas vezes, a primeira quando foi torturada durante o regime militar, e a segunda quando teve câncer. “Hoje, eu só temo a morte da democracia”, sentencia, a cerca de uma hora e 20 minutos de filme.
Ainda restam 40 minutos, mas desde as primeiras cenas do documentário, ao passear pelos cômodos vazios do Palácio da Alvorada, já sabemos que, na visão de Petra, a democracia brasileira foi sempre um teatro naquele cenário. Agora, o pano caiu e o rei está nu. A vertigem sugerida no título é a nossa atual perplexidade. Em muitos momentos do longa-metragem, a voz de Petra Costa descreve o que está explícito nas cenas, como quem desconfia da capacidade de julgamento do expectador. O excesso de narração é sintomático.
Neta de um dos sócios da Construtora Andrade Gutierrez, denunciada por corrupção pela Operação Lava Jato, a diretora toma seu lugar na elite para fazer uma crítica do Brasil vista de cima. Não há muitas imagens dos movimentos de rua e suas complexidades. Para Petra, políticos são peças de xadrez jogadas pelo capital privado. O ciclo de ouro de desenvolvimento do País nos governos do PT também foi possível pela conciliação dos interesses do povo, de um lado, e de um congresso que representa essa elite, de outro.
Mas há uma fissura. Com Dilma, a presidente que não distribuía abraços, a face inconciliável do Brasil ressurge para cobrar o preço do trauma de uma história recente. Tem 30 e poucos anos a diretora, assim como a democracia pós-golpe de 64. Nosso passado violento é jovem.
A incapacidade do Executivo para o diálogo, o desgaste econômico e os escândalos de corrupção insuflam a insatisfação popular e emergem as forças conservadoras de novas lideranças políticas. A bancada da bala, do boi e da bíblia assume o protagonismo.
Na ponta de lança do processo do impeachment, Aécio Neves, a despeito da proximidade familiar com a diretora, não atendeu aos pedidos de entrevista para o documentário. Por outro lado, o deputado Jair Bolsonaro não pensa duas vezes ao abrir o gabinete para a câmera.
Com a parede repleta de retratos dos militares que presidiram o Brasil durante o Estado de Exceção, Bolsonaro vai além da superfície de um saudosismo da aparente ordem social dos anos de chumbo. Evoca o coronel Brilhante Ustra, o terror de Dilma Rousseff, sem ruborizar.
Embora o documentário comece e termine no mesmo lugar, com a prisão de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, mostrando a imobilidade da esquerda para se reorganizar em torno de outras lideranças, é o fantasma da tortura o grande protagonista da obra de Petra Costa.
Um diminuto Temer não consegue dormir nos aposentos do presidente da República durante o período em que governou o País, com medo de fantasma. A própria diretora leva o nome de um militante torturado e morto, mentor de seus pais, chamado Pedro Pomar.
O centro do impeachment e do que se ergueu a partir dele para fragilizar a democracia é a febre de uma ferida que nunca sarou. A tortura, suspensão do diálogo democrático, volta dos porões de 64 para falar em nome dos fantasmas de um Brasil fundado em violência.
Vertigem é o que sentimos ao chegar perto demais de um abismo, e a ambição de Petra foi apreender esse momento em que estamos diante do que há de inconciliável para refundar a democracia no Brasil contemporâneo.
Parece citar o artista pernambucano Daniel Santiago e seu cartaz: “O Brasil é o meu abismo”. Para ele, foi falsa a transição do regime militar para o democrático, como um buraco que nunca se fechou para unir as pontas de uma País dividido por uma profunda desigualdade.