A “ilha” Ponta D’Areia
Para começo de conversa, não existe bairro “Península”. Há duas semanas, um vídeo divulgado nas redes sociais mostra o deputado Edilázio Junior participando de uma reunião com moradores da Ponta D’Areia sobre a construção do Terminal Portuário proposto pelo Governo do Estado. Na oportunidade, afirma que a construção “vai trazer pra cá um público que […]
Para começo de conversa, não existe bairro “Península”. Há duas semanas, um vídeo divulgado nas redes sociais mostra o deputado Edilázio Junior participando de uma reunião com moradores da Ponta D’Areia sobre a construção do Terminal Portuário proposto pelo Governo do Estado. Na oportunidade, afirma que a construção “vai trazer pra cá um público que não tem nada a ver com a gente. (…) quem vai vir pra cá é o público C”, em clara alusão às pessoas que cruzam diariamente a baía de São Marcos com destino a São Luís. Dias depois, em vídeo publicado no seu Instagram, o deputado tenta se explicar, alegando falta de estrutura do local para receber o fluxo de embarcações na área. Nenhum pedido de desculpas sobre a fala preconceituosa. Não existe outro nome para essa declaração: higienismo social. Não há racionalidade nesse tipo de posicionamento.
O que os moradores daquela parte da Ponta D’Areia querem é deixar a classe C fora de seu nicho. Quem estava presente na reunião afirma que a fala do deputado encontrou apoio na quase totalidade dos moradores presentes. O jornalista Jock Dean escreveu em seu Twitter: “Teve um senhor que disse que a única função do terminal portuário seria encher a Península de pessoas da Classe C que andaria pelo bairro vestidas de qualquer jeito e que os moradores acabariam virando reféns, tendo que se trancar nos seus apartamentos (…) Enquanto eu assisti à reunião, não ouvi um comentário minimamente sensato”. Pura criminalização da pobreza.
“Ah, Igor! Mas na verdade tens que ver que lá não tem estrutura para receber assim tanta gente! Só há uma avenida, não existem linhas de ônibus!” Em parte, é verdade. Já fiquei 40 minutos esperando ônibus em um ponto sem cobertura no “IPTU mais caro da cidade”. Numa cidade sem planejamento como São Luís, os serviços públicos sempre chegam bem depois.
Há então uma oportunidade para a Prefeitura de São Luís e o Governo do Estado readequarem a malha urbana de transporte coletivo e aumentar o fluxo para atendimento da demanda dos usuários do Terminal Portuário, dos trabalhadores e empregados da área e, por que não, dos moradores. A suposta falta de infraestrutura urbana parece ser usada como disfarce para preconceito. Essas mesmas pessoas que agora se preocupam com o impacto da construção do Terminal Portuário reivindicaram estudos de impacto dos grandes empreendimentos comerciais instalados na área? Duvido muito.
O episódio, para além do preconceito e memes nas redes sociais, deve fazer refletir sobre o papel dos espaços urbanos e como cada cidadão se relaciona com ele. São diretrizes gerais do Estatuto da Cidade (Lei Federal de 2001) a “oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população” bem como o “planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano”.
Não há qualquer serviço público e comunitário na Ponta D’Areia: nenhuma creche, nenhum posto de saúde. Como disse, o transporte público é deficitário e ineficiente (um Calhau-Litorânea ou Terminal Praia Grande-Cohama das 17h às 19h durante a semana é para os fortes).
O cumprimento das diretrizes previstas no Estatuto da Cidade (e também no Plano Diretor) devem conduzir a uma necessária integração entre as mais diversas zonas de São Luís. Pela legislação, existe a possibilidade de que as políticas urbanas sejam pensadas a partir das características de cada região (residencial, comercial, industrial, etc).
No caso da ponta da Ponta D’Areia (não existe Península!), alega-se que a construção do Terminal Portuário não estaria em acordo com a “vocação turística” da área (principalmente depois da urbanização do Espigão Costeiro, do Memorial Bandeira Tribuzzi e do Forte Santo Antônio). Bom, inegável a vocação turística da área. Mas a cada dia empreendimentos comerciais e residenciais surgem naquela ali e o Estado tem que atender as demandas por serviços públicos de todos que transitam ou vivem pela região.
A política urbana inscrita na Constituição Federal e o Estatuto da Cidade surgiram para tornar o espaço urbano mais democrático, de vivência comum, de relação entre pessoas, de ocupação integral, combatendo a formação de ilhas segregacionistas e higienistas, como é a atual Ponta D’Areia (com exceção da faixa de areia, que aos finais de semana pulsa!). Que o espírito de uma Ponta D’Areia de outrora seja o fio condutor para a inclusão daquela região à cidade de São Luís. Desejo de morador.