São meus direitos! E meus deveres?
Ibraim D M Costa – Procurador Federal
Desde os primórdios de todo o percurso da humanidade, certamente vivemos a época em que se projeta o maior desbalanço entre esforços e recompensas que moldam os comportamentos sociais.
O cérebro humano, desde os idos dos caçadores-coletores, evoluídos para a revolução cognitiva e posteriormente agrícola, sempre encarou o esforço como pressuposto para garantir recompensas.
Foi assim nas épocas nômades, na agricultura sedentária, nos séculos feudais e até mesmo na revolução industrial.
E isso não se dava somente pelo trabalho braçal ao se forjar uma espada, consertar uma mesa de madeira ou capinar o terreno do vizinho para se receber os equivalentes louros.
O esforço utilizado como mola propulsora de sobrevivência coletiva está nos créditos angariados em favores, gestos de presteza, atenção e um equilibrado balanço de méritos conquistados cotidianamente dentro de uma família, tribo ou sociedade. E tudo isso evidentemente envolve esforço e conexão social.
Até outro tempo atrás, os filhos ajudarem os pais dentro de casa em atividades rotineiras eram vistos como úteis e ali se firmava um claro posicionamento hierárquico naquele ambiente. Havia uma confluência de valores e regras postas implicitamente entre eles, gestão de utilidades, expectativas e colaborações mútuas e cumplicidades naturais que evoluíam fortalecendo uma terceira identidade ontológica. E nada disso era confundido com sofrimento dos ‘menores’ porque tiveram que lavar as louças num almoço de domingo em que a secretária não foi trabalhar.
Hoje há quem chame isso de maus tratos ou abuso de poder familiar.
O problema é que o cérebro humano, para além do pensamento racional, é movido inconscientemente por vários vieses que conduzem o comportamento em muito mais situações do que você imagina.
É natural do homem tentar diminuir esforços e economizar energia como preditivos de sobrevivência biológica e social.
E isso impulsionou a evolução da espécie para a era tecnológica, cujo avanço permitiu à humanidade diminuir abruptamente seus desgastes físicos e mentais para se dedicar a outras coisas. Mas que outras coisas?
Foi aí que entramos na lacuna evolutiva, a da sobra demasiada de tempo.
Como o cérebro humano involuntariamente busca elementos de sobrevivência – pertencimentos grupais e utilidade; e como ele funciona em uma espécie de hiper vigilante que tenta evitar riscos e encontrar soluções o tempo inteiro – você aí sentado já calculou sem perceber todo o ambiente ao redor e todas as possíveis ameaças que podem acontecer –, a ausência de exigência de esforços advinda com a evolução tecnológica não foi acompanhada pelo cérebro primitivo, que, antes de tudo, procura sobreviver.
Foi aí que o tempo vazio agora em demasia deixou o homem ser conduzido pelo acaso de toda sorte de influências que lhe podem alcançar. E a sua atenção virou a moeda da vez.
Aqui está a bifurcação do destino da sociedade. As influências que moldam os pensamentos, hábitos e personalidades das pessoas não são mais corrigidos em rodas de conversas ou olhares dos pais à mesa do almoço. Tudo isso se esvaziou com o excesso de tecnologia. Agora o cérebro humano acompanha os hashtag dos unidos virtualmente contra um fator em comum, muito mais movidos pela busca da satisfação de sentimentos primitivos – existir e pertencer -, do que pela aparente boa intenção anunciada fervorosamente.
Inconscientemente, é muito mais sedutor e intuitivo fazer parte do grupo dos carteiros do que o valor da mensagem levada nas cartas.
Além disso, o cérebro comparativo não tem mais convivência próxima com seus vizinhos e família e passou a admirar o tesla da blogueira que ensina a fazer maquiagem na internet.
Mas o que tudo isso tem a ver com ter direitos e não ter deveres?
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, com a geração dos babies boomers até os dias atuais, o humanismo ganhou imenso destaque como uma espécie de contrabalanço aos massacres da condição humana, principalmente no holocausto.
Essa crescente bandeira hoje angariou aliados acalorados no cenário do crescimento abrupto da internet e das redes sociais. Até aí tudo bem!
O problema é que o risco de toda retórica ululante está nas ausências de rédeas que lhes devem ser postas.
A súbita crescente proteção do homem – o tal do humanismo – foi confundida com liberdade individual absoluta, a ponto de os pais não poderem ‘se intrometer’ na vida dos filhos ou de alguém se autointitular cachorro e ter o direito de ser chamado de Marley.
Tudo isso ainda é agravado porque o elemento sobrevivência que conduzia o comportamento humano desde a sua origem foi ofuscado por um ingrediente que é utilizado com frequência pelos proclamadores de justiça do Instagram: a tal felicidade.
Merecer a liberdade individual a todo custo, somadas ao direito de ser feliz é a fórmula perfeita para se negligenciar a maior sorte de sentidos que formaram a sociedade e esquecer que mérito é um dos pilares de qualquer relação econômica básica. O dinheiro é apenas o instrumento.
Rituais de significado como tomar bençãos aos pais perderam para a explicação ultra racional dos defensores daqueles que andam pelados na rua e obrigam as crianças a assistirem simulações de sexo, por não ‘ofender’ funcionalmente os menores.
O discurso de igualdade alcançou a curva de laffer e hoje promove desigualdades ao negligenciar sentidos que formaram a sociedade desde sempre. Basta ver que os tribunais discutem se o nome mãe é excludente de uma categoria criada há pouco tempo e se deve ser substituído por parturiente.
Na prática, a nova geração surge escutando desde o nascimento que possuem direitos e sequer compreendem que toda a história da humanidade foi moldada por esforços prévios que lhes garantissem recompensas. Direitos sempre precedidos de deveres.
E isso se alastrou para toda sorte de cenários dos levados pelo andar do bêbado – sim, aqueles que sequer sabem que sua atenção é objeto de manipulação – a invadir poderes instituídos, imprensas, marketing, empresas privadas e ambientes familiares.
Na perspectiva dos direitos, o assistencialismo pouco pergunta por quem o sustentará. O que se vê é um inconsciente coletivo clamando sempre por mais direitos e nunca falando em deveres, como se o ente pagador e cumpridor desses direitos fosse um senhor de calças folgadas e barriga grande sentado à mesa com milhões de cifras a distribuir por aí.
Mas a distribuição de dinheiro sem trabalho é somente um dos desfechos. O problema está na redução dos almoços familiares à mesa a mera recomposição nutricional, ou dos programas de cinema à qualidade do filme.
Tudo em bom nome do direito de ser livre e feliz a todo custo e não ser obrigado a almoçar com pais, respeitar as crenças do outro, poder imitar cachorros e fazer cena de sexo explícito negligenciando todo o leque de sentidos que aquilo representa.
Esse é só um exemplo. As facilidades tecnológicas foram muito desejadas, mas trouxeram a reboque um vazio existencial que o homem ainda não se deu conta, a ponto de negligenciar toda sua essência.
A todo direito, um dever.