Quem se beneficia com “performances disruptivas” na universidade?
Hesaú Rômulo é cientista político. Doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília e professor de Teoria Política na Universidade Federal do Norte do Tocantins.
Embora pareça algo distante do cotidiano, é preciso lembrar que Lula foi eleito em 2022 com uma margem mínima, vencendo todos os artífices do incumbente. Isso não significa que temos um governo progressista e muito menos um governo que ampliou as vozes de vanguarda. Basta olhar para o histórico dos governos anteriores de Luís Inácio para confirmar aquilo que eu afirmo aqui. No legislativo então o debate é ainda mais severo. Lula governa com um congresso retrógrado, custoso e acostumado com a inércia de Bolsonaro, um presidente sabidamente fraco em se tratando do parlamento.
Diante desse cenário há uma trincheira na sociedade civil que luta por milímetros, por espaços que são reivindicados como legítimos por grupos políticos organizados. A família está sob ameaça gravíssima, para alguns, assim como existe uma orquestração para perseguir o cristianismo e seus seguidores no território brasileiro. De outro lado, há uma urgência em debater temas caríssimos para o movimento LGBTQIAPN+ como o combate à estigmatização, a defesa da utilização de um gênero neutro pela língua oficial, e a ampliação dos direitos humanos, que hoje não atendem as demandas de minorias criminalizadas pelas instituições.
Esse caldo político que temos vivido desagua hoje na seguinte pergunta: a quem interessa que existam performances disruptivas no ambiente acadêmico? Em um contexto polarizado, com a universidade brasileira cada vez na alça de mira de movimentos extremistas, eu entendo que performances incomuns como a que repercutiu, na última semana na UFMA, são eficientes para estimular dois resultados muito concretos.
Em primeiro lugar, a bolha da artista que pensou a performance. Dentro dos limites daquilo que se estuda, pesquisa e divulga, deve haver um sentido muito restrito e peculiar de investir em performances que desafiem os limites do decoro institucional. E aqueles que protagonizam este movimento certamente são recompensados com uma visibilidade fora da curva. Isso anima quem vive dentro deste mundo metade acadêmico metade artístico. Em segundo lugar, descredibiliza a agenda de estudo de gênero no Brasil. É sabido que a academia brasileira tem sofrido um ataque sistemático, e crescente, sobre a sua relevância e contribuição pragmática para a sociedade. A agenda de estudos sobre gênero avançou de maneira consistente, com discussões cruzadas sobre gênero, classe e raça que ampliam horizontes teóricos e ajudam a reformular aquilo que sabíamos sobre o papel deste tema no contexto que vivemos.
Performances como essa, então, operam no sentido de ofuscar trabalhos teóricos e empíricos desta dita agenda, porque municiam, quer queiramos ou não, um discurso anti-intelectual, que despreza os avanços que a ciência brasileira produz, em especial as ciências humanas. Quando pautas como essa ganham manchetes na grande mídia – que é partícipe desta campanha de desmonte do ensino público -, deixamos de discutir algo que, na minha avaliação, é muito mais sensível e mais urgente dentro da agenda de gênero, dentro da agenda de descriminalização de minorias e principalmente no convencimento da sociedade civil de que sim, o trabalhamos que fazemos na universidade é relevante.
Não há hoje um consenso dentro da própria esquerda progressista, por assim dizer, nem sobre o conteúdo nem sobre a forma de enfrentar as diversas discriminações que estas minorias enfrentam. O que há hoje é uma interdição do debate. Fazer perguntas, questionar, não endossar de maneira integral atitudes como essa já sinalizam para uma rejeição imediata, capaz de jogar qualquer um que ouse desafiar esta nova hegemonia (assim como este que vos fala) para a vala do conservadorismo. A margem para discordância hoje é ínfima e o resultado disso pode sim ser colocado na conta da época de extremos que vivemos. Cada um que lide em expurgar os seus demônios.
De um lado, a direita e a extrema-direita batendo cabeça para definir quem será o porta-bandeira do antipetismo em 2026 (com Bolsonaro ou sem Bolsonaro). Do outro lado, a discussão é se a pedagogia disruptiva é eficaz ou não. O Brasil de verdade passa incólume a esta discussão, e quanto mais demorarmos a perceber isso, mais espaço daremos para novas formas de organização política que dialogam com o eleitor da forma mais assertiva possível. É mentira que a esquerda não consegue se comunicar com os setores populares, é mentira que não há uma renovação de discurso.
O que temos hoje, no campo progressista, é a ausência de novas lideranças capazes de conduzir um projeto minimamente coeso de falar com um eleitorado urbano e não alinhado ideologicamente. O espaço existe, mas falta vontade política de fazer determinados enfrentamentos. Questionar não significa deslegitimar, indagar não significa silenciar vozes que historicamente estiveram prejudicadas, tanto pelos partidos, como pela disputa eleitoral. Mas a ponderação não deveria ser exceção e sim uma regra. Infelizmente, não temos visto isso.