O forasteiro idealista e a utopia da Praia Grande
Frederico Lago Burnett – Arquiteto Urbanista, Professor Uema
A utopia está lá no horizonte.
Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.
Eduardo Galeano
Há três anos, num sábado, 4 de dezembro, éramos privados da presença física do mais maranhense dos mineiros, Luiz Phelipe de Carvalho Castro Andrès. Chegando aqui aos 28 anos, viveu 44 entre nós, inteiramente devotados àquela “Ouro Preto à beira-mar” que o cativou ao primeiro olhar. Em quatro décadas como funcionário público em tempo integral foi gestor de departamentos, superintendências e secretaria de Estado, coordenou os Projetos Praia Grande e Reviver e as duas versões do Programas de Desenvolvimento do Turismo. Entre tantos afazeres, arranjou tempo para conduzir a coleta documental que, comprovando São Luís como referência urbana da colonização portuguesa, deu à cidade o título de patrimônio cultural da humanidade pela Unesco em 1997. Sempre uma decisão polêmica, pois mistura valores culturais e interesses políticos, a disputa dos votos na assembleia realizada em Nápoles sinalizava para Andrès, ao se cumprirem 20 anos de sua chegada aqui, os complexos e contraditórios caminhos da preservação de conjuntos urbanos.
Aquelas realizações no núcleo original de São Luís devem se somar a outra grande paixão de Luiz Phelipe, as embarcações tradicionais, seus mestres e artesãos, seus portos e estaleiros, que o levaram a navegar por todo o estado. Envoltos na paisagem cotidiana, canoas, bianas e iates foram iluminados pelo seu olhar forasteiro e logo cadastrados, reconhecidos e nacionalmente premiados como expressão do saber náutico popular a mover o “circuito inferior” de nossa economia por mares, igarapés e furos. Desde então, “os barcos de Luiz Phelipe”, expostos em diferentes pontos do Brasil e hoje objeto de formação técnica no Estaleiro Escola, confirmam em paus, panos e cordas o essencial de sua presença entre nós: seu olhar e coração sensíveis — sempre pousados sobre gentes simples e seus artefatos cotidianos, prestes a sucumbir como passado desvalorizado diante da sedução do novo descartável — foram decisivos para anexar, às louvadas origens francesa e portuguesa da cidade, o labor inventivo de indígenas e africanos, a construir nosso dia a dia.
A constatação que somente a simbiose entre embarcação, estaleiro, mestre e tripulação mantém viva e sustenta aquela produção e suas práticas, se contrapunha à ideia de um “centro histórico” e um “patrimônio cultural” romantizados e esvaziados dos seus sujeitos populares. Casario e ruas sem diversidade são como barcos sem mestres ou ajudantes, não vão a lugar nenhum. Não há como encher tombadilhos e sobrados com seres arredios a tais ambientes, tampouco tentar resolver o vazio urbano com usuários, beneficiários, parceiros… Na visão preservacionista de Luiz Phelipe, sem protagonistas que conduzam os barcos a bom porto, isto é, sem sujeitos com saber e autonomia, todo o conjunto edificado pelo acúmulo histórico do trabalho humano corre o risco iminente da paralisia social ou do naufrágio físico entre pedras de cantaria. É possível reconhecer, nas entrelinhas de todos os seus projetos e práticas, o desígnio em assegurar presença e espaço para a diversidade social própria da Praia Grande, algo como a utopia de um lugar para todos.
E o Projeto Praia Grande, com seus vários subprogramas articulados, parece ser a origem e expressão maior dessa utopia. A constante referência de Andrès às suas metas, ao longo dos 40 anos da atuação, comprova seu constante esforço para assegurar, nas diversas políticas de “revitalização” e “requalificação” do bairro, o tema da inclusão social. Tal perseverança é evidente no “Projeto de Promoção Social e Habitação no CH de São Luis” de 1980, onde a parceria com o BNH para adquirir e recuperar dezenas de imóveis privados — note-se bem, privados e não públicos! — e entregá-los aos seus ocupantes, visava a “recuperação da dignidade e de condições humanas de moradia para a população trabalhadora do Centro Histórico”. Combinado com “a instalação de um espaço destinado a se constituir em núcleo de atividades propiciadoras de organização comunitária”, o projeto pretendia ser “estímulo a maior convivência comunitária e à organização de associação de moradores” para “participar efetivamente e de forma decisiva nas questões de seu interesse.”
Sabemos como tais projetos foram sendo rejeitados em sua totalidade ou descaracterizados no essencial, enquanto imóveis privados sem função social continuaram encortiçados e desabando na Praia Grande; também recordamos como a transferência das repartições públicas para novas áreas retirou funcionários do bairro e inviabilizou comércios e serviços a eles destinados; ou como centros e grupos culturais foram sendo invisibilizados e preteridos por grandes eventos turísticos. Apelando-se, então, para o engodo do “vazio demográfico”, trocou-se aquela utopia inclusiva pela atração de grandes empreendimentos como única fonte de emprego e renda. Por fim, a repulsa ao comércio informal e aos núcleos de cultura popular tornou o projeto de Luiz Phelipe Andrès — e ele próprio! — incômodo e supérfluo aos intentos de gentrificação do bairro. Seu exílio para o Estaleiro Escola do Bacanga em 2015, entre barcos e mestres, aliviou a dor de ser privado daquilo que o fez maranhense, mas terá sido o golpe final no seu projeto utópico para a Praia Grande?