O estranho Reino dos homens-máquina
Outro dia, tive um sonho estranho. Sonhei que estava em viagem de avião, um bimotor fabricado em 1968. Atravessando uma área de floresta, começamos a perder altura… Subitamente, o piloto da aeronave nos avisou que estávamos em queda e que haveria necessidade de realizar um pouso de emergência no meio da mata. Fechei os olhos, […]
Outro dia, tive um sonho estranho. Sonhei que estava em viagem de avião, um bimotor fabricado em 1968. Atravessando uma área de floresta, começamos a perder altura… Subitamente, o piloto da aeronave nos avisou que estávamos em queda e que haveria necessidade de realizar um pouso de emergência no meio da mata. Fechei os olhos, comecei a rezar. Lembrei de casa, da minha família, preparei o corpo em posição de impacto… De repente, um estrondo gigantesco: pensei que seria o fim. Apaguei… minutos depois, acordei, com a cabeça ensanguentada e dores por todo o corpo. A tontura tomava conta de mim e fiquei, por alguns minutos, sem saber se o que eu vivia ali era sonho ou realidade. Era como se fosse um sonho dentro de um sonho. Perdi a noção do tempo.
Ouvi sirenes de resgate. Àquela hora, o Sol já ameaçava se por. Com lágrimas e sangue nos olhos, invadido por dores intensas na coluna, tomado pela taquicardia reflexa do trauma, entendi que havia sobrevivido. Sim, Deus tinha me dado mais uma chance. É incrível como um filme inteiro passa na sua cabeça, com o peso dos erros acossando o mais ínfimo espaço das boas memórias, com as lembranças das omissões e transgressões maltratando a última sinapse do seu corpo. Estava atônito no momento em que chegou o resgate. Uma voz robotizada chamou por mim e disse: “Te levaremos conosco agora”. Abri os olhos e ali vi dois homens-de-lata.
Colocaram-me com relativo cuidado numa espécie de maca. Meus ossos doíam. Não acreditava no que estava acontecendo, comecei a ficar nervoso. Clamava para que localizassem minha família. “Acalme-se!” , diziam.
Levaram-me para uma espécie de carro que flutuava, uma ambulância ultramoderna, movida por algum tipo de magnetismo de alto desempenho. Fecharam as portas do super-veículo e, alguns minutos depois, chegamos à cidade deles. Pedi um remédio que tirasse de mim aquela dor. Aplicaram-me, então, uma injeção. Como se fosse mágica, a minha dor passou e consegui levantar. Limpei o sangue da testa, do rosto. Comecei a andar com meus dois salvadores-de-lata.
A cidade era enorme, como se fosse um grande parque industrial, vi fábricas de todos os tipos, muita fumaça saindo pelas chaminés. Atravessamos uma ponte suspensa por gravitação. Embaixo, havia um rio escuro, parecia pura poluição em movimento. Procurei por peixes, tentei localizar vegetação ao longo do caminho. Não vi nada. Incomodado com a paisagem estéril, procurei por algum resquício de grama que fosse. Nada. Asfalto, fumaça, desolação eram tudo em meu campo de visão. Ali, o que eu enxergava era um lugar feio, repleto de homens e mulheres de lata que andavam rápido. Nas costas de cada um, havia um número e uma identificação: robô-mecânico 01, robô-soldador 03, robô-engenheiro 125, robô-mediador de conflitos cibernéticos 250, robô-cirurgião de peças 2112.
Andei mais um pouco com meus salva-vidas robóticos. Percebi no meio da caminhada, na porta do que parecia ser uma escola, mantida num galpão escuro, onde nas paredes havia escritos em sequência, com tinta fosforescente, uma centena de ordens. Verbos no imperativo: Seja, faça, calcule, subtraia, some, multiplique… No outro canto do galpão, uma série de frases: É proibido brincar, é proibido conversar, é proibido discutir. No teto do galpão, em letras gigantes, com um traço firme, irretocável, li “É proibido pensar. Sua função é produzir!”.
A sociedade das máquinas celebraria, naquela noite, o recorde de produção de armas de defesa. Foi o melhor resultado de exportações de toda a série histórica. Para chamar os concidadãos robôs, a celebração prometia novas atualizações do firmware e do hardware. Seriam distribuídos 20 toneladas de lubrificantes de última geração, que aumentariam o tempo da jornada de trabalho e reduziria a obsolescência programada das partes metálicas e dos circuitos neurais. Cada homem e mulher máquina trabalhará, a partir de agora, pelo menos mais 5 anos. Para os robôs-dos campos de petróleo, expostos ao Sol e sobrecarga e desgaste de material, as trocas de peça teriam um desconto incentivado pelo governo.
Nada me chamou mais atenção ali naquela “Cybercity” do que os pequenos robôs, em fila, entoando um som que parecia um hino, em uníssono. Lembrei de todas as crianças que conheci, lembrei da minha Cecília e de todas as suas traquinagens. Tive pena daqueles pequenos robôs. Eles não tinham motivos pra sorrir.
Conversei um pouco com meus salvadores. Perguntei a eles por que era assim tão estéril a vida naquele lugar? Por que precisavam viver pelo domínio das ordens? Por que precisavam de tanta produção de armas, se não havia guerras ali? Disseram-me que a sociedade que muito pensa, que tem espaço para críticas ao invés de seguir ordens, lugares assim são berços de subversivos. Que eles poderiam perder o comando do povo- robô e que, se não fosse pelo domínio do medo, um dia poderiam perder o poder. Perguntei, já invadido por um sentimento de vazio, como eles tinham conseguido levar a cabo este plano. Disseram-me, de pronto, em uníssono:
– Eliminamos o pensamento crítico desde cedo em nossas crianças, depois transformamos os jovens robôs em linha-de-produção, dizemos a eles o que devem fazer pela cidadela e assim eles vivem a vida, como parte da engrenagem, como polias em movimento.
Pedi para que me levassem de volta ao local do meu acidente. Assim o fizeram… Agradeci aos dois pelo salvamento, mas tinha que voltar para o meu Brasil. “Talkey!!!”, o mais alto me disse. Despedi-me com um aceno dos meus dois amigos e fiquei a vê-los irem embora. Enquanto isso, percebi nas costas deles os escritos: B17-Presidente e PG01-Ministro da Economia. Acordei… Dei um abraço apertado em minha esposa e um beijo bem demorado em minha filha, enquanto pensava “como é boa a vida fora de Cibercity!