O poeta da terra, o cantador das margens
Dr. Raimundo Castro – Professor Titular do Departamento de Matemática do IFMA, Campus São Luís – Monte Castelo; Vice-Diretor da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Regional do MA; Membro da Rede Ibero–Americana de Pesquisadores e Acadêmicos (REDE-IPA), da Rede Latino–Americana de Etnomatemática (RELAET) e Membro Colaborador da Academia Maranhense de Ciências (AML).
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Há nomes que não cabem em lápides. Se alguém tentassem cravar “Vital Farias” no mármore frio, as letras se rebelariam, sacudiriam a poeira e seguiriam cantando, porque Vital não nasceu para ser esquecido. Sua morte, ocorrida na última quinta-feira (6), ainda que verdadeira, é apenas um engano do tempo. No coração do Cariri, em Taperoá, sua vida brotou como um fiapo de rio que se recusa a secar. Menino de pé rachado, filho do barro e do vento, cresceu ouvindo cantadores de feira, vendo o sol arder nas costas dos trabalhadores e entendendo, desde cedo, que palavras carregam peso. Antes mesmo de virar músico, já era poesia ambulante.
João Pessoa foi seu primeiro destino, mas o Rio de Janeiro o chamou como a maresia chama o navegante. O sertanejo encontrou outros errantes, outros sonhadores, todos trazendo um pedaço do Brasil dentro da viola. Seu violão não era só corda e madeira — era barco, jangada, estrada de chão batido para quem queria escapar do esquecimento. Entre shows, conservatórios e madrugadas de boemia, Vital começou a se fazer ouvir. E que voz era aquela? Forte como um trovão no sertão, doce como a chuva depois da seca. Não imitava, não se moldava ao que já existia. Inventava. Cantava o que via, o que lembrava, o que sabia ser verdade. O Nordeste não era cenário em suas canções — era chão, suor, ferida aberta e cicatriz. Se havia algo que Vital Farias não sabia ser, era domesticado. Nunca quis agradar patrões da cultura, nunca alisou a juba para caber em salões bem-polidos. Preferia as ruas, os bares, as feiras. Sua música não era apenas melodia — era golpe certeiro, era faca amolada na pedra da realidade.
Quando lançou “Ai, Que Saudade D’ocê”, talvez não imaginasse que aquela melodia simples, mas intensa, se tornaria um hino. Era um canto de exílio e de pertencimento, porque ser nordestino é estar sempre com um pé fora da terra natal, mas nunca sair dela por completo. E quem nunca sentiu um arrepio ao ouvir “Veja (Margarida)”? A canção não era apenas um convite para abrir os olhos — era quase uma profecia. Vital compunha como quem adivinha o futuro, e seu canto, enraizado na tradição, carregava uma inquietação que nunca envelheceu.
Nos anos 80, somou sua voz a outros três gigantes: Geraldo Azevedo, Elomar e Xangai. Juntos, fizeram do palco uma fogueira, onde histórias eram contadas não apenas com palavras, mas com notas musicais que dançavam como labaredas. “Cantoria” não foi apenas um espetáculo — foi um manifesto, um grito ancestral que reafirmava a força do Nordeste. Cada um trazia sua marca: Elomar com seu sotaque medieval, Xangai dobrando versos com esperteza de matuto, Geraldo Azevedo com sua suavidade encantatória. E Vital? Vital era o lírico das miudezas, o trovador que transformava o cotidiano em resistência. “Cantoria” não foi só música. Foi identidade, foi raiz fincada na terra seca, insistindo em florescer.
Vital não fazia da arte um enfeite. Sua música não era passatempo, era denúncia, era arma contra a indiferença. Cantava as dores do povo, as injustiças, a seca que ainda sangra, o sertanejo esquecido. Era incômodo para quem via na música apenas entretenimento. Preferiu o risco à comodidade, a verdade ao aplauso fácil. Nos últimos anos, afastou-se dos grandes palcos, mas não da música. Continuava compondo, refletindo, bradando sua visão de mundo. Não mudava a rota para agradar ou para ser aceito. Nunca fez concessões.
E se, por um momento, alguém acreditou que sua voz poderia se calar, bastaria ouvir o eco de suas palavras. A poesia de Vital não era feita de abstração, mas de realidade concreta, de uma fome que ainda existe, de um sertão que continua a lutar. Seus versos eram denúncia, mas também resistência — como um mandacaru que insiste em florescer mesmo quando o chão racha.
E mesmo quando a pressa do mundo apagava memórias, Vital sabia como fazer suas palavras durarem. Em cada estrofe sua, há um retrato vivo do sertão, do Brasil profundo que raramente vira manchete. A dor latente, por vezes agonizante, do sertanejo; mas ele cantava esperançando no sentido freiriano e lembrando que sonhar também é um ato revolucionário. Seu canto não pedia licença. Ele se impunha, como o vento que atravessa as catingueiras e os barreiros, soprando verdades que ninguém ousava dizer.
Vital Farias não é matéria para tribunais do tempo, nem sua trajetória pode ser reduzida a sentenças definitivas. Sua obra escapa às margens do julgamento e se espalha como um rio indomável, fluindo entre a tradição e a invenção, entre a raiz e o vento. Não cabe analisá-lo sob a ótica da defesa ou da absolvição, pois a arte não é um caso a ser encerrado, e um artista não se define pelo crivo de acertos e desacertos, mas pela grandeza do que construiu e daquilo que legou ao mundo. Era feito de contrastes e intensidades: ao mesmo tempo que denunciava as dores do sertão e da injustiça, também celebrava a vida com a poesia simples e arrebatadora de quem enxerga beleza nas miudezas.
Sua música não é um veredicto, mas um testemunho vivo, um feixe de memórias cantadas que transcendem o tempo e as circunstâncias. Ele não pertencia a rótulos nem se curvava a classificações – era brisa que refresca e tempestade que assombra, era trovão e acalanto, resistência e doçura. O que realmente importa não é reduzi-lo a julgamentos passageiros, mas reconhecer que sua voz permanece, reverberando como um eco contínuo na alma de quem o ouviu e se deixou tocar. Porque um artista não se mede pelos passos que deu ou pelos caminhos que evitou, mas pelo rastro que deixou no chão que percorreu.
E assim, entre um acorde e outro, entre a brisa quente de Taperoá e o eco dos palcos que um dia pisou, Vital segue vivo. Porque a saudade não mata — imortaliza.