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Crítica de filme: o musical Emília Pérez

Bruno Coelho é formado em Arquitetura e Letras, professor de Língua Inglesa há 25 anos e cinéfilo compulsivo

Porque o fraco musical Emília Pérez abre um péssimo precedente para o Oscar


O Oscar sempre foi um palco de celebração do cinema em sua forma mais impactante, onde obras memoráveis se destacam por sua excelência artística, narrativa e técnica. No entanto, a indicação de Emília Pérez para importantes categorias da premiação deste ano levanta questionamentos sobre os critérios da Academia. O filme, dirigido por Jacques Audiard, tenta se equilibrar entre ser um musical, um drama e uma crítica social, mas falha em todos esses aspectos, resultando em uma obra confusa e artisticamente inconsistente.

Um musical sem alma musical


Ao se autodefinir como um musical, Emília Pérez já cria uma expectativa natural de que as canções desempenharão um papel central na narrativa, tanto para emocionar quanto para aprofundar o enredo. No entanto, o filme não consegue sequer entregar músicas memoráveis. Se compararmos com grandes musicais que marcaram a história do cinema, como Moulin Rouge!, La La Land e Chicago, fica evidente o abismo de qualidade. Essas obras não só trouxeram trilhas sonoras cativantes, que ecoaram muito além das salas de cinema, mas também utilizaram a música de forma orgânica, como um elemento vital da trama.

Nem vamos tão longe: recentemente reassisti ao dramatico musical Nasce Uma Estrela com Lady Gaga e Bradley Cooper, ambos forte defensores das pautas abordadas em Emília Perez. Neste, sim, conseguiram tratar de temas também duros como o alcoolismo, a fama repentina, o culto à celebridade e os jogos de poder da decadente indústria fonográfica com qualidade musical ímpar. Se você, leitor, sabe de que filme estou falando, as músicas da Gaga já vieram à sua mente – se duvidar, até em versão reggae roots quê tanto gostamos no Maranhão. Que memorável trilha sonora!

Eu nem vou citar o impacto das canções dos filmes infantis da Disney. Todos conhecemos Let it Go, de Frozen e alguns de nós (ou nossos rebentos) sabem de cor as canções de Moana ou Encanto. Para ser sincero, When You Wish Upon a Star, de Pinóquio é uma das minhas músicas favoritas até hoje. Hakuna Marata, de Rei Leão também é inesquecível. Não espere algo assim acontecendo ao término do filme de Audiard. Na verdade, algumas canções serão inesquecíveis porque a internet não perdoa e várias já viraram meme.

Não há maneira fácil de dizer isso, mas, em Emília Pérez, as canções parecem mais uma muleta para o roteiro do que um recurso narrativo legítimo. Muitas vezes, as músicas surgem de forma abrupta, com letras pouco inspiradas e interpretações que beiram o amadorismo, sendo murmuradas ou mal cantadas. O resultado é um desconforto para o espectador, que não consegue se conectar emocionalmente com nenhuma das faixas. Não há uma única canção que grude na memória, que desperte o desejo de ser revisitada. Isso é um grande problema para um filme que se propõe a ser um musical.

Uma abordagem rasa sobre o narcotráfico


O filme tenta, sem sucesso, abordar o tema do narcotráfico no México. Para quem já assistiu a obras como Sicário, de Denis Villeneuve, fica claro o contraste gritante. Sicário é um filme tenso, bem dirigido, com uma atmosfera sufocante que expõe as complexas redes de tráfico e seus impactos devastadores em ambos os lados da fronteira entre México e Estados Unidos. Já em Emília Pérez, o narcotráfico é apenas um pano de fundo superficial. Existe um narcotraficante, mas o tráfico em si nunca é realmente explorado. Não vemos o impacto da droga na sociedade, as estruturas de poder envolvidas, nem as consequências humanas e sociais dessa atividade.

O filme opta por uma estética caricatural do México, com personagens que parecem mais estereótipos do que pessoas reais. Isso é agravado pelo fato de o diretor, um francês, ter admitido que não estudou profundamente o tema. O resultado é uma representação que carece de autenticidade e profundidade, algo problemático quando se trata de retratar uma realidade tão complexa e dolorosa.

A superficialidade do drama das crianças desaparecidas


Outro tema sensível que o filme tenta abordar é o desaparecimento de crianças, mas, novamente, o faz de maneira rasa. Existem filmes que trataram esse assunto com a seriedade e a sensibilidade que ele merece, como O Som da Liberdade, estrelado por Jim Caviezel (que representou Jesus em A Paixão de Cristo) que tocou profundamente o público ao expor o tráfico de crianças de forma crua e impactante, e Um Olhar do Paraíso, dirigido por Peter Jackson, que mergulha na dor da perda de uma criança com uma abordagem poética e devastadora.

Emília Pérez não consegue sequer arranhar a superfície da complexidade emocional e social desse tema. O drama das crianças desaparecidas é tratado de forma quase episódica, sem o peso dramático necessário para provocar uma verdadeira reflexão ou empatia no público. O filme se perde em sua tentativa de conciliar temas tão sérios com números musicais desajeitados, resultando em uma obra que não é eficaz em nenhum dos dois aspectos.

Boas atuações desperdiçadas em um filme medíocre


É inegável que o elenco de Emília Pérez tem talento. Zoe Saldaña, por exemplo, entrega uma performance sólida, mesmo que limitada pelo material com o qual teve que trabalhar. No entanto, a presença de atuações competentes não é suficiente para salvar o filme de suas falhas estruturais. O mais problemático é que, ao ser indicado ao Oscar, Emília Pérez ocupa o espaço de outros filmes e artistas que poderiam ter recebido o reconhecimento merecido.

Em um ano com tantas performances notáveis, fica a pergunta: será que não houve outras atrizes que entregaram atuações mais impactantes do que Zoe Saldaña em Emília Pérez? O problema não está na qualidade da atuação individual, mas na escolha da Academia em destacar um trabalho que, dentro de um contexto mais amplo, não se destaca.

O impacto da decisão da Academia


A indicação de Emília Pérez ao Oscar parece menos uma celebração da excelência artística e mais um reflexo de uma agenda política. A Academia, cada vez mais preocupada em se posicionar politicamente, parece ter dado preferência a um filme que, embora tente abordar questões sociais importantes, falha em fazê-lo de forma significativa. Isso abre um precedente perigoso: o de premiar a intenção em detrimento da execução.

Se o Oscar começar a valorizar mais o “o que” um filme tenta dizer do que “como” ele diz, corre-se o risco de desvalorizar o próprio cinema enquanto arte. Afinal, um filme não é apenas sua mensagem; é a forma como essa mensagem é construída, com qualidade estética, narrativa e emocional. Emília Pérez não consegue entregar nenhuma dessas qualidades de forma satisfatória.

Finalmente


Emília Pérez não é um filme corajoso, inovador ou artisticamente relevante. Eu honestamente e sinceramente acredito que todos os temas abordados neste filme são dignos de obras maravilhosas como Moonlight ou Priscila – A Rainha do Deserto e tantos outros, mas os temas aqui são um suco ralo, aguado e sem açúcar desses temas todos batidos em um liquidificador chamado tokenisml.

É uma obra confusa, que tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo e fracassa em todas elas. Sua presença no Oscar deste ano é um sintoma de uma Academia que parece mais preocupada em enviar sinais políticos do que em premiar o verdadeiro mérito cinematográfico. E isso, infelizmente, abre um péssimo precedente para o futuro da premiação.

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