opinião

Um conto de Machado e os tempos novos

Aureliano Neto – Membro da AML, AIL e AMLJ aurineto@hotmail.com

Ideias de Canário. Personagem/narrador: Macedo. Tem início a narrativa machadiana com o relato de Macedo que diz que, indo por uma rua, livrou-se de um tílburi, que trafegava em disparada e quase o atirou ao chão. Escapou, pois conseguiu jogar-se para dentro de uma loja de belchior (brechó). O dono do comércio não lhe deu pela presença e continuou a cochilar sentado, ao fundo, numa cadeira. Andou pela loja, observando as coisas velhas, rotas, próprias dessas espécies de casa de comércio. Macedo registrou todas as suas impressões. Ao sair, viu uma gaiola pendurada na porta. Dentro, um canário, que logo começou a saltar. E logo começou a ter um inusitado diálogo com o canário, até porque Macedo era ornitólogo. Em determinado momento da conversa, indagando ao canário sobre quem era o seu dono, a resposta foi imediata: – Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, refletindo sobre o que dissera, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo. Com essa resposta, Macedo ficou pasmo, pela linguagem e ideias do pássaro.

O diálogo continuou. Quis Macedo saber se o canário tinha saudade do espaço azul e infinito. Ele pediu explicação. Macedo, o atendeu dando mais objetividade à pergunta: – …que pensas deste mundo? Que coisa é o mundo? Resposta do canário: – O mundo é uma loja de belchior (brechó), com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Tendo o velho do brechó despertado do sono, Macedo propôs-lhe comprar o canário, para, como ornitólogo, fazer um grande estudo sobre o ele: linguagem, ideias, sentimentos estéticos, definição do mundo etc. Macedo o pôs numa ampla gaiola, na varanda de sua casa, onde o pássaro poderia ver o jardim e um pouco do céu azul, e manteve com ele longas horas de estudos. Três semanas depois desse trabalho científico, indagou-o a respeito do que era o mundo. O canário respondeu: – O mundo é um jardim assaz largo, com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, de onde mira o resto. Tudo mais é ilusão e mentira. Com essa resposta, Macedo percebeu algumas alterações, mas ainda insuficientes para conclusão do estudo ornitólogo.

Dias depois, o canário foge, quando os criados da casa lhe dispensavam o atendimento determinado por Macedo. Embora envidassem todos os esforços, não o encontraram. Macedo foi fazer uma visita a uma chácara de um amigo, situada nos arrabaldes. Passeando, ouviu o trilar de uma pergunta: – Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu? No galho de uma árvore, era o canário. Voltaram a conversar. – O mundo, meu querido, disse Macedo. E o canário: – O mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima. Essa declaração deixou indignado Macedo, que lhe disse que, se lhe desse crédito, o mundo seria tudo, até mesmo uma loja de belchior (brechó). E o canário respondeu: – De belchior (brechó)?, trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de brechó?

E o diálogo e o conto chegam ao fim bem machadiano.

Mas algumas questões que despontam nos diálogos desse célebre conto continuam a exigir de todos nós respostas. O canário circunstancialmente deu as suas respostas. E as nossas respostas?

Como vemos o mundo e o que é mundo? Vemos o mundo e o concebemos da gaiola, onde cada um nós se encontra prisioneiro de nossos valores e antivalores? Qual a nossa perspectiva de mundo? Enfim, o que é o mundo? O mundo é o que se pensa de acordo com as nossas conveniências? Indagamos, numa visão passageira de nossos tempos: qual é o mundo de Moro e das figuras torpes a que ele prestou serviços, para receber a generosa dádiva de ser Ministro da Justiça, e eleger-se senador da República? Esse ídolo tosco e de barro, que fora tão decantado neste Brasil verde e amarelo, antes, depois e durante um certo agora, em vista das circunstâncias por ele criminosamente fabricadas. Se ele conhecesse as ideias do canário do Bruxo do Cosme Velho, teria uma visão do mundo de acordo com a realidade que impôs, usando a toga para fazer injustiças?Os tempos são novos ou são novos os tempos? O canário poderia responder a essa grave indagação. Ainda bem que o Globo de Ouro de melhor atriz foi concedido a Fernanda Torres. Uma festa do povo contra o arbítrio, que conspurcou a nossa história. Deu ao brasileiro uma visão de canário, livre da gaiola, de valorização da liberdade de viver livre, conquistada após a fuga da gaiola estreita do analfabetismo histórico, E, como diz o jornalista Aquiles Lins, em texto publicado em 6 de janeiro de 2025: “A vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro de melhor atriz pelo filme Ainda Estou Aqui transcende a celebração de um feito histórico para o cinema brasileiro. O prêmio é, acima de tudo, um convite à reflexão sobre a importância de preservar a memória e buscar justiça pelos crimes cometidos durante a Ditadura Militar brasileira.” E, num realismo contundente, para que a trágica história não se repita, adverte: “Ainda Estou Aqui nos mostra que anistia é a pior solução para os agentes do estado que assassinam e subvertem a democracia.” Saiamos, pois, da gaiola e olhemos o mundo com liberdade e no exercício pleno dessa liberdade.

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