BASTIDORES

Sobre as leis

Ora direis: cumpri as leis! Muitos dirão: não, depende das circunstâncias; outros exaltarão: certo, não, não perderei o senso. E ainda acrescentam, como argumento do seu absoluto respeito à regra impositiva: a lei foi feita para ser cumprida. Mas existem aqueles que entendem que a lei foi feita para ser violada. O célebre e ainda […]

Ora direis: cumpri as leis! Muitos dirão: não, depende das circunstâncias; outros exaltarão: certo, não, não perderei o senso. E ainda acrescentam, como argumento do seu absoluto respeito à regra impositiva: a lei foi feita para ser cumprida. Mas existem aqueles que entendem que a lei foi feita para ser violada. O célebre e ainda celebrado Millôr Fernandes chegou a dizer, numa das suas tiradas cáusticas, que “a Justiça, como se sabe, é a busca da Verdade. Ao contrário da Lei, que, como ninguém ignora, é o encobrimento da Mentira”.  Lei, Direito e Justiça, essa trilogia que tem servido para a Paz e para a Guerra. Os homens se digladiam para que a Lei seja aplicada e a Justiça seja feita, ou ao contrário. Para que esta simbiose se processe de forma harmônica, a Lei teria que ser justa. O dominicano Henri Lacordaire já afirmara que “entre os fortes e os fracos, entre os ricos e os pobres, entre o senhor e o servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta”. Mas que lei? Qualquer uma? A justa ou a injusta?

A norma jurídica (a lei) não é formulada instantaneamente, até porque, na sua elaboração, dela não participam apenas os profissionais do Direito – aquelas pessoas que se prepararam técnica e cientificamente para o exercício da atividade jurídica. Há uma diversificada participação de legisladores, que, em tese, representam o pensamento da sociedade, além de técnicos, que assessoram os integrantes dos Poderes Legislativo e Executivo, em casos de projeto de iniciativa deste, assim como a opinião pública e a comunidade como um todo, esta através de instituições que expressam o seu pensamento, ora convergindo ou mesmo divergindo.  Fábio Ulhoa Coelho, jurista conhecidíssimo do meio jurídico, um profissional do Direito, num ensaio epistemológico Direito e Poder, na p. 22, esclarece que “a norma jurídica é resultado da vontade, manifestada por uma elaboração mental, inserida no interior dos limites fixados pela evolução das forças produtivas e pelas nuanças da luta de classe. Mas da vontade de um conjunto de homens, mais ou menos difuso, que chamarei por comunidade jurídica”.

Na elaboração da lei, a luta de classe, inserida no DNA Da sociedade, quer se queira ou não, reflete o eterno conflito de interesses. Ao revés, é bom lembrar Kelsen que, na Teoria Pura do Direito, supõe o Direito apenas como Direito Positivo, não passando este de um legalismo lógico. Bem antes da difusão desse pensamento, o Código de Napoleão, de 1804, tinha aplicação de suas regras sem que houvesse interpretação, não admitindo a concepção de que o Direito é a lei que reflete valores erigidos na sociedade e que podem gerar conflitos a serem pacificados. Sabe-se que a norma jurídica é estática. O que a dinamiza, dando-lhe vida, daí o Direito em permanente luta e mudança, são os fatos e os valores. Essa concepção se encontra no tridimensionalismo: fato, valor e norma, embora discutível.

Busco a lição de um jurista, João Bosco da Encarnação. Pouco conhecido. É o autor de uma obra datada de 1996, cujo título é: Que é isto, o Direito? Trata-se de um estudo interessante, que procura esclarecer vários temas jurídicos, que interessam a nós todos, os que têm legitimidade e interesses na produção legislativa, haja vista que a Lei, que deve refletir o Direito, tem que ter um caráter universalizante e ser construída em benefício da sociedade e dos interesses sociais, sem discriminação. Logo no Tema 4, ensina João Bosco: “Dizer o direito é tomar uma decisão sempre, pois o direito é essencialmente prático. O juiz não faz conjecturas, nem um instrumento jurídico é sede de meras discussões teóricas.” Ainda assim, há, infelizmente, julgadores que decidem por meras conjecturas, deixando de lado os valores, muitas vezes consagrados em textos constitucionais, e até mesmo valores fundamentais. E trafegam pelos caminhos das conjecturas pessoais, porque essa é a sua ideologia, que entende prevalente, fugindo da concepção de que a norma (a lei, como Direito) se concretiza no momento da aplicação, mas não no campo do logicismo positivista. Nesse sentido, é de bom tom recorrer a Eros Grau, em Ensaio e discurso sobre a Interpretação/aplicação do Direito.

Em resumo, as decisões que compõem conflitos, na permanente construção do Direito como luta, na visão de von  Ihering, não se podem equivaler a um sistema computacional em que as regras são aplicadas de acordo com um programa predefinido. Deve ser dado um sentido valorativo e lógico. De outro modo, é de pouco relevância fazer-se distinção entre um sistema jurídico e outro, que tem cada um suas características e princípios próprios.  E ainda estabelecer-se diferenciação dogmática entre boa-fé objetiva e subjetiva.

Se assim fosse, Millôr Fernandes, citado acima, estaria certo. Ou, há milênios, Sólon, ao satirizar: “A lei é como teia de aranha: pega os pequenos, mas é rompida pelos grandes.” Ou, ainda, num entendimento diverso do que dissera Voltaire: Não interpretar as leis, humanizando-as, numa permanente construção do Direito e da Justiça, é negar os valores éticos e olvidar a dignidade da pessoa humana, corrompendo a nobre função de dizer o Direito.

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