O mundo pós-homo sapiens
Aureliano Neto – Membro da AML, AIL e AMLJ · autineto@hotmail.com
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O homem primitivo demorou muito para entender o mundo: o que fazia no mundo e o que significava o mundo em seu redor, com os seus fenômenos inexplicáveis. Não sabia o que era o tempo. Vivia apenas. E sabia muito pouco sobre a vida, e sobre a morte. O tempo lhe foi ensinando como superar as intempéries e vencê-las. Uma das primeiras descobertas do homem (o homo sapiens) foi o fogo. De uso acidental. Depois, controlado, passado a produzi-lo por vontade própria. Tenho alguma convicção de que, a partir desse conhecimento, o homo sapiens, que nos antecedeu, começara o processo civilizatório, até chegarmos ao tempo onde nos encontramos, a nos dizer que superamos várias etapas. Produzindo o fogo, e, em torno dele, para alimentar-se e se proteger do frio e dos animais selvagens, o homem passou a se reunir comunitariamente. Daí para frente criou a consciência de que tinha necessidade de viver a vida em sociedade, para poder superar a corrida contra os obstáculos, que é vida em combate, no dizer poético de Gonçalves Dias. Mas, além do fogo, que passou a controlá-lo e produzi-lo, inventou as armas – não para simplesmente matar – mas para delas fazer uso e abater os animais, cuja carne lhe servia de alimento para alimentar-se e aplacar a fome, a sua maior carência.
Chegamos ao lugar em que estamos. O mundo da virtualidade: estamos e somos virtuais, mas não tão virtuais assim. Há realidades que nos fazem pensar se regredirmos para o período da incivilização do homo sapiens. Vejamos. Sou leitor da Revista Cult. Sempre dou um tempinho para ler os seus excelentes e bem alinhavados textos. É uma publicação que trata dos assuntos mais variados: do samba, arte plástica, literatura, psicologia e até necrobiopoder, que trata das maternidades periféricas contra o Estado. Uma expressão pomposa, porém de conteúdo extremamente sério. Ou assim parece.
As nossas sofridas mães, desde os tempos bem antigos, têm sido vítimas dessa prática desumana do necrobiopoder. A Cult nº 274, ano 24, de outubro 2021, publica matérias extraídas do
dossiê Mães contra o Estado. Maternidade, luta, luto. A primeira delas reproduz um texto da professora Berenice Bento, no qual é relatado, de início, este caso: “CENA 1 – Ano: 1871. Rio de Janeiro. Deputados federais disputam o destino dos/as filhos/as das mulheres escravizadas. Pela primeira vez na história do Brasil, o Estado pauta o tema da abolição (indireta) da escravidão. A proposta, encaminhada pelo imperador Dom Pedro II, decretava o fim da hereditariedade biológica da condição escrava. As mulheres escravizadas dariam à luz filhos livres. E elas? Continuariam escravizadas.” A discussão foi intensa e levou bastante tempo – alguns meses. Os deputados, na luta pelos interesses dos seus financiadores/escravistas, levantavam os argumentos mais cretinos possíveis. Ressalte-se: o que é muito comum em nossos parlamentos em que a treva substitui a luz da inteligência. Um deles afirmava peremptoriamente: “Como vamos aceitar em nosso meio uma turba selvagem (as crianças nascidas livres, acrescento), sem educação, sem religião?” E aí, eu pensei, distraidamente: que religião? A pregada por Jesus Cristo, com certeza, não.
Na CENA 4, consta que o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, famoso por suas falcatruas e de cuja mente insana foram abortadas inúmeras safadezas, defendia o aborto obrigatório em mulheres pobres, sob esse desumano e incivilizado argumento: “Isso é uma fábrica de produzir marginal.” Pensei sobre essa solução, digna de um Hitler ou de um Trump dos tempos modernos: a mãe do marginal Sérgio Cabral não teve o cuidado civilizatório de abortá-lo, para nos livrar da sua voracidade delinquencial. Uma pena, não?! Mas, o passado teima em estar presente. Gaza e os palestinos que o digam.
No Brasil, pós-homo sapiens, há uma mania da nossa polícia de matar negros, negras e pobres dos nossos morros e das nossas favelas. O pior de tudo é que há alguns imbecis, desumanamente imbecis (e ainda bem mais pior, desculpem a redundância, religiosos, com a santa Bíblia debaixo do sovaco) que adoram essa espécie de criminalidade, porque, quem sabe o que vai na cabeça dessa gente, tem uma finalidade profilática, na linha exterminadora do pensamento do famigerado Sérgio Cabral, ou mesmo do nosso capitão, que desastrosamente ocupou o Planalto,
e teve a perspicácia destrutiva de liberar e disseminar o uso das armas de fogo, que, penso eu (às vezes, tenho essa mania de pensar), já fazem parte do cotidiano do Oeste brasileiro, em consonância com as satânicas e atuais medidas adotadas por Trump, o novo dono do mundo, que pode tudo, até mesmo comprar Gaza e expulsar das suas casas, ocupadas bem antes de Cristo, os indefesos palestinos.
Volto à Cult. E, no texto, O ventre negro no Brasil, consta o assassinato, em 8 de junho de 2021, de Kathlen Romeu, de 24 anos e grávida, ao ser morta com um tiro de fuzil no peito, dado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, por ter a desdita de fazer uma visita à avó no Complexo do Lins, localizado no bairro do mesmo nome. A mãe de Kathlen chora a perda da filha e diz: “…minha alma foi junto contigo.” Mata-se, mata-se, mata-se. Muitos adoram, e dizem-se cristãos; outros, embora não aceitem, omitem-se. Recorrem à covarde frase, que nega a própria cidadania: – não é comigo; não tenho nada com isso. Tolo engano. Todos somos responsáveis na construção de uma sociedade justa e humana. Não há reza nem oração que afastem o inferno, que, no dizer de Sartre, somos todos nós e não apenas os outros.