Opinião

A Era Vargas, de 1930 a 1945

Aureliano Neto

Nunca esqueci da manhã do dia 24 de agosto de 1954. Não a data em si. Mas o fato de que presenciei naquela manhã, na varanda da casa de meus pais, cuja oficina de marceneiro ficava bem ao lado daquela aconchegante varanda que servia para o café, o almoço e o jantar. A minha avó Aldenora, empregada de uma das nossas fábricas de tecido – não sei se Camboa ou Santa Amélia – chorava e levava aos olhos um pano para limpar as lágrimas, acompanhada dos lamentos da minha mãe Marionildes e do meu pai Florêncio, um carpinteiro trabalhista, que sofria com o desfecho do governo Vargas. Todos lamentavam, aos prantos, a morte do presidente Getúlio Vargas, que, para coibir um golpe de Estado, se suicidara com um tiro no coração, cuja bala assassina fora projetada de um revólver 32 e certeiramente atingira de modo fatal o seu coração.

Leio a introdução de um dos livros que tratam desse episódio histórico, que, à época dos fatos, enlutou todo o Brasil, sobretudo a classe trabalhadora. No início da publicação, consta o seguinte relato: “Palácio do Catete, Rio de Janeiro, capital da República dos Estados Unidos do Brasil. Terça-feira, 24 de agosto de de 1954, por volta das 8h30min da manhã. No terceiro andar do edifício de arquitetura neoclássica, ouve-se o estampido seco de um tiro. O deputado federal e médico Lutero Sarmanha Vargas corre em direção ao quarto de onde teria partido o disparo. Lutero encontra o pai, o presidente do Brasil, Getúlio Donelles Vargas, de pijamas, estirado, ensangüentado, moribundo, com a metade do corpo deslocada para fora da cama. Ao lado, um revólver Colt 32 ainda quente. Sua esposa Darcy Vargas e funcionários do Catete chegam depois e assistem, perplexos, aos últimos suspiros do homem que mais tempo permaneceu no poder do Brasil republicano: exatos 18 anos, seis meses e 19 dias, em suas duas passagens. A primeira de 1930 a 1945; a segunda, de 1951 até aquele fatídico desfecho em um mês de intensas pressões por sua renúncia.”

Neste ano de 2024, a morte de Getúlio Vargas completa 70 anos, tempo em que a história também tomou conhecimento da

carta-testamento, por ele deixada e encontrada na mesa de cabeceira do quarto onde se matara. A carta de Vargas tem sido considerada, pelos seus termos denunciativos, que persistem até os dias atuais, um testamento político. O final fatídico, que culminou no suicídio do presidente, teve origem, como ponto de partida, em toda a sua trajetória, a Revolução de 30, na qual liderou a insurreição contra as oligarquias rurais que dominavam o país, sobretudo as castas da burguesia rural de São Paulo e Minas, caracterizada pela nefasta e atrasada política do café com leite, e pôs fim a esse rodízio de carta marcada, na disputa pela presidência da República, ora sendo ocupada por um paulista da oligarquia cafeeira, ora do grupo econômico oligárquico mineiro. E o Brasil ficava parado, ante os interesses desses grupos dominantes, que, nos dias atuais, assumiram outra roupagem, a exemplo do golpe de 2016.

Para se ter uma ideia dos fatos, rememoro um pouco dessa história. Assim o faço: – Em 1930, o Brasil teve eleições presidenciais. O voto era aberto e as chances de fraudes eleitorais eram grandes. Tipo a que ocorreu na Venezuela de Maduro. De acordo com a política do café com leite, paulistas e mineiros revezavam-se na presidência da República. O paulista Washington Luís encerraria seu mandato e deveria indicar um mineiro para a sua sucessão. Contudo, ele quebrou o acordo firmado com os mineiros, e o seu candidato para as eleições foi Júlio Prestes, outro paulista. Isso fez com que Minas Gerais rompesse politicamente com São Paulo e migrasse para a oposição. Getúlio Vargas era o candidato oposicionista e liderava a Aliança Liberal. Tinha como vice o paraibano João Pessoa. Ambos representavam os estados excluídos das políticas que beneficiavam apenas as oligarquias que se sucediam no poder. Apesar do apoio que conquistou, Vargas e Pessoa foram derrotados pela chapa governista liderada por Júlio Prestes. A morte de João Pessoa, em 26 de julho de 1930, reacendeu a chama oposicionista. Seu assassinato foi considerado como crime político, uma perseguição do governo federal contra seus opositores, e transformou-se no estopim para a Revolução (ou melhor dizendo, golpe) de 30. Do Rio Grande do Sul partiram as tropas em direção ao Rio de Janeiro para depor o presidente Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes. Foi o que ocorreu. Sendo vitoriosa a Revolução (ou o golpe), tem início ao governo provisório de Getúlio Vargas, que vai de 1930 a 1934, com fechamento do Congresso Nacional, revogação da Constituição de 1891 e a extinção dos partidos políticos. O governo de Vargas se

efetiva por meio de decretos-lei, até a segunda fase, de 1934 a 1937, com a vigência da Constituição de 1934, em que se caracteriza por um regime de governo democrático liberal, mas com insurgência de conflitos entre os diversos grupos políticos que participavam da cena política de 1930, entre os quais os comunistas e integralistas, com a inclusão da Intentona Comunista de 1935, que serviu de argumento para Vargas realizar novo golpe de Estado, em novembro de 1937, culminando no fechamento do Congresso Nacional e a imposição de uma nova Constituição, a de 1937, elaborada por Francisco Campos, e implantado o Estado Novo, que vai de 1937 a 1945. Tem início a ditadura getulista, à feição dos regimes nazi-fascistas que prevaleciam nos países europeus, como a Alemanha e a Itália.

As elites enxergaram o golpe de 37 como uma maneira de reestabelecer a ordem e anular a luta de classes, mantendo o Brasil afastado de reformas sociais mais profundas. As próprias elites facilitaram as manobras golpistas e a usurpação do poder, encobertadas pela farsa do Plano Cohen, que teve a participação elaborativa do então capitão Olímpio Mourão Filho, que vem aparecer na deflagração do golpe de 64. Dado golpe de 37, teve inicio um governo que foi baseado no estatismo autoritário, ou seja, tendo em vista a desarticulação da população e a ausência de organizações que a representem.

A bem da verdade, deve ser dito que o Estado Novo fora sustentado politicamente por um pacto entre as Forças Armadas, a burguesia – sempre ela – agrária e industrial. Todos acomodados e usufruindo das benesses dentro de casa. E bem quietos.

Conforme afirma o historiador Boris Fausto, “sob o aspecto socioeconômico, o Estado Novo representou uma aliança da burocracia civil e militar e da burguesia industrial, cujo objetivo comum imediato era o de promover a industrialização do país sem grandes abalos sociais. A burocracia civil defendia o programa de industrialização, por considerar que ele era o caminho para a verdadeira independência do país; os militares, porque acreditavam que a instalação de uma indústria de base fortaleceria a economia, um componente importante de segurança nacional; os industriais, porque acabaram se convencendo de que o incentivo à industrialização dependia de uma ativa intervenção do Estado. A aproximação entre a burguesia industrial e o governo Vargas

ocorreu principalmente a partir de 1933, após a derrota da revolução paulista”. Após o desfecho da II Guerra Mundial, em que o nazi-fascismo sucumbe pelo poder das forças democráticas aliadas, entre essas o próprio Estado brasileiro que esteve no campo de batalha dando a sua contribuição para vitória. O Estado Novo desmorana. Getúlio Vargas renuncia, retira-se do poder e parte para sua cidade natal São Borja (RS), afirmando que voltaria nos braços do povo. E, ao final de tudo, projeta-se como o grande vencedor das eleições de 1945, com a vitória do seu Ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, e ele mesmo se elege deputado em alguns estados e senador.

A legislação trabalhista – fundamento social do seu governo – abrangia tão-só o trabalhador sindicalizado, não alcançando o trabalhador rural, nem o doméstico. Getúlio fez uma CLT que apenas garantia alguns direitos à classe trabalhadora em formação no país, com a finalidade de controlar o processo da luta operária, verificado nas décadas de 1910 e 1920. Proibia o direito de greve. E ainda: Vargas utilizou o Estado como controlador da ação sindical dos trabalhadores e também para estabelecer os mecanismos de exploração a serem utilizados pelos capitalistas, ao criar leis específicas para isso, com o intuito de superar a luta de classes, gerando uma suposta harmonia social. Era a conformação do Estado corporativista de Vargas, ao lado de uma cidadania regulada, conforme foi instituída nos termos do Decreto n. 22.132, de 1932, que permitiu apenas aos empregados filiados a sindicatos apresentarem reclamações trabalhistas perante as Juntas de Conciliação e Julgamento; bem como o Decreto n. 23.768, de 1934, que reconheceu o direito de férias somente aos empregados sindicalizados; e o de n. 24.694, de 1934, que estabeleceu que as convenções coletivas de trabalho valiam apenas para os empregados sindicalizados. Obedecendo à lógica da cidadania regulada, os benefícios previdenciários foram usufruídos apenas pelos empregados cuja categoria profissional era reconhecida pela lei.

Por todos esses fatores históricos, é impositivo que se faça um estudo reflexivo mais aprofundado sobre a Era Vargas, que, ao contrário do que disse Fernando Henrique Cardoso, em 1995, ainda

não acabou. Pelo contrário, em que pesem a vida e os tempos digitalizados, a luta de classes continua. Na defesa dos direitos do trabalhador, se quisermos construir uma sociedade de paz e igualdade, deve-se avançar muito mais ainda.

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