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Lá vem meu boi urrando…

A noite vem chegando de mansinho. Não há escuridão. É tempo de olhar pro céu. Ver o tempo é um modo de passar e viver o tempo. E passa, roçando-nos como a brisa faceira que vem, festiva e provocante, do mar, ao alisar, com toda leveza, como a carícia de amor, as nossas faces. Tenho […]

A noite vem chegando de mansinho. Não há escuridão. É tempo de olhar pro céu. Ver o tempo é um modo de passar e viver o tempo. E passa, roçando-nos como a brisa faceira que vem, festiva e provocante, do mar, ao alisar, com toda leveza, como a carícia de amor, as nossas faces. Tenho essa mania antiga de olhar pro céu, pra ver se as estrelas brilham e piscam, como a nos convidar para um passeio celestial. E vejo o luar nas labaredas das fogueiras, na poesia ritmada dos arraiais, sob o som das matracas, dos pandeirões e do tambor de crioula. Sinto – é um sentir às vezes alegre e por vezes melancólico – a voz do negro, em grito de liberdade e poesia, que atravessou os mares, vindo lá da África distante para aqui fazer morada definitiva, encorpando a brasilidade deste torrão, e a nos encantar com o seu canto a São João. Faz-nos dançar no ritmo do bumba-meu-boi, em sotaques de matraca, de zabumba, dos pandeirões e de orquestra. Pelo batuque e na dança, de muita fé e religiosidade, do tambor de crioula, a crença invoca no terreiro da casa-grande e das ruas os santos dos orixás e de todos os santos que fazem do mar a sua morada de encantos e bemfazejos.

Tudo nos faz lembrar o urro poético do boi e da bela mocidade; a poesia dos festejos dos arraiais é uma dança só, o boi urra – urrou, urrou, urrou, urrou, e repete o estribilho, cantado por todas as vozes, esse canto poético do vaquejador, que traduz todos os sentimentos de quem dança e ouve esses versos do eterno cantador Coxinho:

Lá vem meu boi urrando, subindo o vaquejador, deu um urro na porteira, meu vaqueiro se espantou, o gado da fazenda com isso se levantou. Urrou, urrou, urrou, urrou meu novilho brasileiro que a natureza criou

Urrou, urrou, urrou, urrou meu novilho brasileiro que a natureza criou.

Os arraiais se iluminam e efervescem dos mais variados sentimentos e vibram com o canto dessa canção de São João, que, no lirismo dos seus versos, exalta os sentimentos juninos do maranhense e de todos aqueles que visitam a terra abençoada do bumba-meu-boi, para viver essa festa, de luzes, sons, vozes, cantos, danças, num pujante ritmo de muita devoção, na poesia do canto e dança do Boi Barrica, do Pindaré, do Maracanã, de Nina Rodrigues, da Madre de Deus, de Axixá e de todos os nossos rincões, cujos cantadores deixaram o seu nome na história da música maranhense de São João. Humberto de Maracanã, entre tantos cantos, recheados de poesia, que ficaram gravados no coliseu de nossa história junina, deixou de herança a toada Maranhão, meu Tesouro, meu Torrão, levada a todos os torrões deste Brasil e ao mundo, com o encanto do seu cantar, pela voz da maranhense Alcione. Humberto exalta nessa toada o seu amor pela sua terra e por tudo que o bumba-meu-boi representa como arte popular:

Maranhão, meu tesouro, meu torrão Fiz esta toada pra ti, Maranhão

Terra do babaçu que a natureza cultiva Esta palmeira nativa é que me dá inspiração Na praia dos lençóis tem um touro encantado E o reinado do rei Sebastião

Sereia canta na proa Na mata o guriatã Terra da pirunga doce E tem a gostosa pitombotã

E todo ano, a grande festa da Juçara No mês de Outubro no Maracanã

No mês de Junho tem o bumba-meu-boi Que é festejado em louvor a São João O amo canta e balança o maracá A matraca e pandeiro é que faz tremer o chão

Esta herança foi deixada por nossos avós Hoje cultivada por nós Pra compor tua história Maranhão.

No canto lírico de Bela Mocidade, toada feita para o Boi de Axixá, o poeta e cantador Donato descortina o profundo sentimento de amor nesta canção, exaltada em coro, de viva voz, nos arraiais juninos, por ser um canto já eternizado no tempo, sem passado, sem presente, apenas transcendental, e de um lirismo encantador, a luzir nas duas primeiras estrofes, em que a segunda é o refrão desse canto poético de Donato:

Quando eu me lembro, Da minha bela mocidade. Eu tinha tudo à vontade, Brincando no boi de Axixá. Eu ficava com você, Naquela praia ensolarada, E a tua pele bronzeada, Eu começava a contemplar.

Mas é que o vento buliçoso balançava teus cabelos, E eu ficava com ciúme do perfume ele tirar. Mas quando o banzeiro quebrava, Teu lindo rosto molhava, E a gente se rolava na areia do mar.

Bethânia, a Maria de D. Canô e da Bahia de todos os santos, com a sua voz melodiosa, ao cantar Bela Mocidade, faz dessa canção um hino a São João, repetido em todos os arraiais, nas vozes entusiastas do público que, em massa, se faz presente.

Mesmo com todo esse lirismo junino, que se projeta dos terreiros e arraiais do Maranhão, olhemos todos pro céu, é noite de São João. E agradeçamos a todos esses santos juninos: São Pedro, São Paulo, São João, Santo Antônio e São Marçal, e a Deus que nos legou essa vida de muito amor e de poesia. Que a paz dessas orações, cantadas nos versos desses cantadores esteja com todos nós.

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