opinião

Chico Buarque de Holanda – 80 anos de poesia

Aureliano Neto- membro da AML e AIL.

Página de opinião desta quinta-feira (11). (Foto: Banca O Imparcial)

Não chore ainda não / Que eu tenho um violão / E nós vamos cantar / Felicidade aqui / Pode parar e ouvir / E se ela for de samba / Há de querer ficar (…) Meu pinho, toca forte / Que é pra todo mundo acordar / Não fale da vida / Não fale da morte / Tem dó da menina / Não deixa chorar / Olê olê olê olá. E, no caminhar dessas canções, de profundo e intenso lirismo, vem Pedro pedreiro penseiro esperando o trem, ou A Rita, do desamor buarqueano, que levou meu sorriso / No sorriso dela, que matou nosso amor / De vingança / Nem herança deixou. Mas emerge do seu canto a doce Carolina, que nos seus olhos fundos / Guarda tanta dor /A dor de todo esse mundo. Tantas são musas, que Chico Buarque, em cada obra musical que constrói, pinta o retrato que contém todos os sentimentos do mundo.

Em 19 de junho de 2024, Chico Buarque de Holanda, esse trovador de todos os nossos sentimentos, fez 80 anos de vida e de poesia. A mídia não silenciou, como o fez na época da brutal censura da ditadura de 64, e que, conquistada a democracia, após muitas lutas, estabeleceu, e ainda estabelece, a sua censura seletiva. Nesses 80 anos de construção de uma imensa obra, composta de eternas canções, peças teatrais, romances e um firme posicionamento na luta pela liberdade, Chico Buarque, que fora perseguido sem trégua pela burrice e crueldade da censura, recebe as mais fraternas manifestações de todos aqueles que reconhecem a sua importância para cultura brasileira e universal. O que dizem? Transcrevo algumas passagens, com a finalidade de melhor esclarecer. O repórter Gilberto Costa, da Agência Brasil, referindo-se ao acervo das suas obras musicais e literárias, dá estas informações: “Cinquenta e oito anos de carreira, 537 canções, 1.302 gravações, 50 discos (próprios ou com parceiros, em estúdio ou ao vivo), quatro peças de teatro, uma novela, um livro de contos e seis romances – o próximo, Bambino a Roma, será publicado em agosto. Esse é o legado do compositor, dramaturgo e escritor Chico Buarque de Hollanda, que nesta quarta-feira (19) comemora 80 anos junto com a família, em Paris. A vasta obra de Chico é objeto de mais de uma dezena de livros, alguns lançados nesta celebração octogenária.”

Sobre a perseguição da censura de 64, Márcio Pinheiro, no seu recente livro, O que não tem censura nem nunca terá: Chico Buarque e a repressão artística na ditadura militar, diz que a primeira música, que sofreu essa agressão ao direito à liberdade de ser poeta, foi Tamandaré: “Para Chico, sua composição contava a história de ‘um Zé qualquer, sem samba, sem dinheiro’, que encontra no chão uma nota de um cruzeiro e, diante da insignificância, do pouco valor da nota, resolve perguntar ao Almirante: ‘Pois é, Tamandaré / A maré não tá boa / Vai virar a canoa / E este mar não dá pé, / Tamandaré Cadê

as batalhas / Cadê as medalhas / Cadê a nobreza / Cadê a marquesa, cadê / Não diga que o vento levou / Teu amor até / Pois é, Tamandaré / A maré não tá boa / Vai virar a canoa / E este mar não dá pé, Tamandaré / Meu marquês de papel / Cadê teu troféu / Cadê teu valor / Meu caro almirante / O tempo inconstante roubou,” A respeito dessa censura, com o propósito apenas ditatorial, Chico aproveitou para esclarecer: “…a música não ofende a ninguém, porque ofensivo ao Almirante é sua efígie na insignificante nota de um cruzeiro’.”

A censura que atacava Chico Buarque e muitos outros artistas, como Caetano e Gil, que foram exilados, após serem presos, durante mais de um mês, sem qualquer culpa, pelo simples fato de serem artistas, barbarizou a nossa cultura musical e literária. E a estupidez do censor não tinha limites. A censura que impedia Chico Buarque de, pela primeira vez, interpretar uma composição de sua autoria, era a mesma que havia interditado a música “Mamãe não quer dar”, do quase desconhecido Otolino Lopes, e, pasmem, a peça O senhor Puntila, de Bertolt Brecht, uma das glórias do teatro mundial. Pois bem, da estupidez autoritária da censura não escapou nem peça Antígona, de Sófocles.

Esse fora o mundo de Chico Buarque, que iniciou a sua projeção artística pelo ano de 1964, quando, por via do catastrófico golpe de 64, foi imposto o arbítrio no Brasil, contra o qual muitos e muitos brasileiros lutaram até o advento da Constituição de 1988, com a derrubada do famigerado colégio eleitoral, a eleição de Tancredo Neves à presidência da República, e a consolidação do maranhense José Sarney como presidente.

Falar de Chico Buarque de Holanda faz sair de mim tantas e muitas emoções. Conheci-o ainda bem jovem – ele lá e eu aqui. Desde a célebre marchinha A banda, que disputou com Disparada, de Theo Barros e Vandré, o II Festival de Música Popular Brasileira, dividindo o primeiro lugar. Nara Leão, a musa da bossa nova, interpretou A banda, e Disparada teve como intérprete Jair Rodrigues, que também estava começando a sua brilhante carreira. O fundamental dessa disputa deve ser ressaltada, a demonstrar a personalidade conciliatória de Chico Buarque: foi ele quem propôs o empate das duas músicas. Esse fato é registrado em seu livro A era dos festivais: uma parábola, de Zuza Homem de Mello.

Da música A banda acompanhei e curti imensamente toda a trajetória criativa de Chico Buarque de Holanda, o Machado de Assis da música popular brasileira. Ainda estudante de Direito, fazendo o curso no tradicional prédio da Faculdade, em frente ao Teatro Arthur Azevedo, por um acaso da vida, por força da bondade de Verina, nossa querida secretária, assisti à peça Morte e Vida Severina, que foi musicada por Chico. Deu-se em mim um encantamento instantâneo. Além das belas canções de protesto, o ator principal da peça era

Paulo Autran, que tínhamos por aqui, a seu respeito, raro conhecimento, e só através das novelas televisivas.

A disputa entre a música Sabiá e Pra não dizer que não falei de flores nos é contada por Márcio Pinheiro, ob. cit.: “O ginásio lotado discordara da decisão do júri de que ‘Sabiá’, música de Antônio Carlos Jobim com letra de Chico, fosse a vencedora do III Festival Internacional da Canção, da TV Globo. A favorita do público era ‘Pra não dizer que não falei de flores’ (ou ‘Caminhando’, como ficou conhecida), composição de Geraldo Vandré. Com uma estrutura muito simples, descendo do modo menor para o maior um tom abaixo e subindo novamente, numa repetição constante desse movimento de ida e vinda, a canção gerou empatia instantânea com o público. Assim, quando Hilton Gomes, o apresentador do festival, anunciou que a música ficara em segundo lugar, de imediato o público começou a se posicionar de pé para vaiar o anúncio da vencedora. Indo em direção ao microfone para interpretar sua música, Vandré tentou contemporizar: ‘Olha, eu acho uma coisa só: Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque merecem todo o nosso respeito’. De nada adiantou. As vaias aumentaram. Vandré terminou de cantar, o público aplaudiu, mas logo voltou a vaiar.”

E mais: “Apesar do grande apelo popular, desta vez Vandré não levaria a primeira colocação. E isso parecia ser pedra cantada, como, anos mais tarde, Walter Clark, diretor da Globo, confirmaria em sua autobiografia, ao contar que recebeu do Alto Comando do 1o Exército a orientação de que a música não deveria ganhar o festival.”

São 80 anos de tantas canções, de tanta poesia. Perdoe-me Chico: não vai passar, não pode passar, pois quando, seu moço, nasceu meu rebento / Não era o momento dele rebentar. Tu rebentaste. Combateste a fome e o arbítrio. És a resistência da nossa cultura viva. És Chico Buarque de Holanda. És o refrão que nós cantamos. Quem te viu e não viu, continua cego de tudo. De Carolina, de Januária. Deus lhe pague, a ele, o cego, e todos nós, que vimos. Ah!, Chico, até pensei, pois junto a minha rua havia um bosque que um muro alto encobria lá todo balão caía toda maçã nascia e o dono do bosque nem via. Essa genial modinha, Chico, tá como a moça de hoje, bem diferente, e é a nossa sofrida realidade. Mas não vamos desatinar, embora ela e muitos desatinem. Apesar de tudo aquilo e apesar de muitos vocês, mas pela força de tua poesia, nós, hoje, é que mandamos, e falou e tá falado, embora o amanhã será sempre, por sua e nossa luta, um novo dia. Parabéns, Chico Buarque de Holanda, pelos vívidos e bem vividos 80 anos de idade.

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