Opinião

Carolina Maria de Jesus – diário de uma favelada

Aureliano Neto- membro da AML e AIL

Opinião desta quinta-feira (29). (Foto: Banca O Imparcial)


Faz tempo. E, por simples curiosidade, tive contato, usufruindo e vivenciando, o realismo narrativo e memorialista de Carolina Maria de Jesus: Quanto de Despejo, diário de uma favelada. Neste momento, dou um passeio pelos escaninhos do tempo, como se estivesse a caminhar por uma estreita rua de pouca iluminação e a projetar sombras opacas. E com alguns reflexos de luz elétrica ou de lamparina, saindo das frestas das janelas entreabertas. Vasculho a memória desse tempo e tento extrair as reminiscências que estão encravadas e resistindo a vir até a mim. Mas… foi assim. Lendo uma revista da época, tomei conhecimento do livro de Carolina Maria de Jesus, com referências a sua pessoa, cuja publicação decorrera de um trabalho do jornalista Audálio Dantas. Falava-se então no romance Quarto de Despejo. Consegui adquiri-lo no formato de livro de bolso. Li-o, de uma sentada. Fiquei então sabendo que autora era uma negra favelada. A mim, ainda bem jovem, estudante e gráfico, no exercício da profissão de linotipista, portanto, por ofício, habituado ler, não me despertava grande interesse essa parte da biografia da autora de Quarto de Despejo. Interessava-me saber o que significavam os sentimentos expressos naquele diário que o lera, motivado pelo inusitado da notícia e do que estava descrito, cotidianamente, por aquela nova escritora.
É verdade. Reitero: faz tempo. Mas, de lá pra cá, o tempo não passou e continua a insistir na inesquecível lembrança dessa leitura. Porém, talvez nem tanto seja isso. O passado se faz sempre presente, até porque não passa. Mas está persistentemente em nossas nostalgias, ou como saudade de ter sido feliz, ou como angústia de não ter aproveitado a felicidade. Esse é o drama nosso de cada dia: vencer as reminiscências do passado, buscando a felicidade no presente, que escapou do passado.
Quarto de Despejo foi republicado em edição comemorativa e, não sabendo onde se encontra o meu velho livro de bolso, fiz uma releitura de algumas passagens nessa renovada edição. Consoante diz Audálio Dantas no prefácio: “Quarto de Despejo não é um livro de ontem, é de hoje. Os quartos de despejo, multiplicados, estão transbordando.” Com razão esse jornalista mecenas. No dia 15 de julho de 1955, Carolina de Jesus registra, como uma espécie de crônica diária, que dá início a outras crônicas, o que se segue: “Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar. Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão.” Em prosseguimento, Carolina faz o relato da sua relação do dia a dia nada inamistosa com a vida, da qual contracenam os personagens do seu cotidiano: “Hoje a Leila está embriagada. E eu fico pensando como é que uma mulher que tem duas filhas em idade tenra pode embriagar-se até ficar inconveniente. Dois homens vieram trazê-la nos braços. E se ela rolar na cama e esmagar a recem nascida? …O que eu acho interessante é quando alguem entra num bar ou emporio logo aparece um que oferece pinga. Porque não oferece um quilo de arroz, feijão, doce etc.?”
Desse realismo sofrido e sobrevivido pela escritora Carolina, tem-se uma verdadeira crônica da vida como ela é, na feliz concepção de Nelson Rodrigues, também cronista das tragédias suburbanas. Essa comentada e discutida obra, Quarto de Despejo, diário de uma favelada, foi lançado ao público em agosto de 1969, pela Livraria Francisco Alves Editora. Segundo Carlos Vogt, no texto Trabalho, pobreza e trabalho intelectual, datado de 1983, em comemoração aos sessenta anos de sua existência, a primeira edição foi de dez mil exemplares, esgotada na primeira semana do lançamento.
Porém, na ditadura de 1964, chegou a ser apreendido por ser considerado subversivo. Absurdo da ditadura de 64, que não é nenhuma novidade, uma vez que Tortura de amor, música de Waldick Soriano, foi censurada, pelo fato de ter no seu título a palavra “tortura”. Vim a saber dessa truculência ditatorial em recente documentário do Canal Curta!
Vendidos os dez mil exemplares da primeira edição, em seguida o livro foi traduzido para treze idiomas, vendendo mais de um milhão de exemplares. O respeitado escritor Alberto Moravia, que prefaciou a edição italiana, foi alvo de contundentes ataques feitos pelo crítico Wilson Martins, que contestou a autoria de Carolina de Jesus e, antes de adotar essa posição nagacionista, declarou que o livro era um embuste. Em defesa da escritora, o poeta Manuel Bandeira, citado no prefácio da nova edição.
Para mim, Quarto de Despejo é um livro de crônicas do cotidiano, com forte força poética, pois elaborado numa linguagem própria do ambiente onde os fatos são narrados, com forte carga de emoção, e onde os personagens vivem as suas alegrias e tristezas. O tempo de vida da obra está a dizer que é literatura. Se é boa ou não, depende do sentido que se possa extrair do seu conteúdo e da escrita. Carolina de Jesus veio ao mundo literário, não pela porta da frente, mas, por ser pobre e negra, pelos fundos de um barraco de favela. Da sua narrativa realista, todos os dramas ali vividos são, como em O Cortiço, expostos. É Alberto Moravia quem diz: “O que nos conta Carolina? Ela tem um mote de profundidade quase shskespeariana que nos apraz citar: ‘não tem coisa pior na vida do que a própria vida’. Carolina, pois, nos conta a coisa pior que há na vida, ou seja, a própria vida.”
Outras obras nos foram deixadas por Carolina Maria de Jesus. Entre essas o livro de poemas Clíris, do qual destaco o poema Humanidade: “Depois de conhecer a humanidade / Suas perversidades / Suas ambições / Eu fui envelhecendo / E perdendo / As ilusões…” Como se percebe, a poética de Carolina de Jesus é de humanismo telúrico, não tendo perdido a atualidade. São os dramas e tragédias de todos os tempos, a conviverem no Quarto de Despejo.

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