opinião

Cantos e Desencantos

Aureliano Neto- membro da AML e AIL

Opinião desta quinta-feira(07) do O Imparcial. (Foto: Banca virtual)

A poesia existe para ser sentida, amada, sofrida, inquietada, discutida, sorvida, embriagada, em toda a dimensão de sua mensagem do canto e do desencanto. O poeta ou a poeta não são apenas aqueles que fazem o poema em versos. São os que fazm a arte poética, ao criar uma nova realidade, numa linguagem de consagração ou negação dos sentimentos, que se traduzem no sonho da poesia. O poeta que constrói as suas ou nossas utopias com as palavras, delas faz uso construindo um mundo de metáforas, de sonhos, e assim reconstrói uma nova realidade com a argamassa da poesia. Há outros meios que são utilizados pela carpintaria da poética, na linguagem do escultor, do artista plástico, do músico, o qual, ao harmonizar as notas musicais, transforma a natureza do canto do pássaro numa mensagem instrumental da sua poesia, ou o murmurar incessante das águas inquietas do mar num sentimento de alegria, felicidade. Tom Jobim, o poeta musical da bossa nova, disse: “Só a linguagem musical basta.” Nesse viver, Heitor Villa-Lobos, Carlos Gomes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Noel Rosa, Ary Barroso, Vinícius de Moraes, Sinhô, Ataulfo Alves, Dolores Duran, Gilberto Gil e tantos outros poetas da música captaram esses elementos da realidade vivenciada por todos nós e construíram o mundo fundado numa outra realidade, em que nossos sonhos e utopias de uma vida menos crua dão sentido e beleza ao nosso caminhar nessas contraditórias via-crúcis, acidentadas por pedras, conflitos, desamores e fartos respingos de animosidade. Mas muito amor, pois é preciso amar.

Esse pensamento que de início exponho, foi-me provocado em decorrência de uma leitura que estava a fazer de um texto do crítico e ensaísta Antonio Candido (sem os acentos gráficos), que consta no seu livro A educação pela noite, originário de uma palestra entitulada Poesia e ficção na autobiografia, em que qual o professor Candido inicia com as estas palavras: “Nesta palestra desejo comentar certos livros recentes produzidos por escritores mineiros, que podem ser qualificados de autobiografias poéticas e ficcionais, na medida em que, mesmo quando não acrescentam elementos imaginários à realidade, apresentam-na no todo ou em parte como se fosse produto da imaginação, graças a recursos expressivos próprios da ficção e da poesia, de maneira a efetuar uma alteração no seu objeto específico. Além disso, a palestra visa sugerir que estes traços imprimem um cunho de acentuada universalidade à matéria narrada, a partir de algo tão contingente e particular como é em princípio a vida de cada um.” Tem-se aí o primeiro parágrafo, ou seja, apenas a parte introdutória, em que Antonio Candido destaca o sentido imaginativo e universal da linguagem havida como poética e usada pelo poeta Murilo Mendes. Tanto que, mais adiante, ao referir-se à autobiografia feita por Murilo Mendes (A idade do serrote), adverte que “a esse propósito, diga-se que talvez Murilo Mendes seja o poeta mais radicalmente

poeta da literatura brasileira, na medida que praticamente nunca escreveu senão poesia, mesmo quando escrevia sob a aparência de prosa. A sua capacidade de reflexão e debate era grande, mas ele a exerceu sempre de modo poético, ao contrário de Manuel Bandeira, Mário de Andrade ou Carlos Drummond de Andrade, que são grandes prosadores ao mesmo tempo que grandes poetas”.

Reflitamos um pouco. Essas questões sobre o sentido da poesia, debatidas por Antonio Candido, são bem interessantes e têm sido objeto de meditações e de estudos da teoria literária. Mas, fico por aqui, porquanto ainda estou lendo o livro e logo, quem sabe, voltarei, de forma específica, ao assunto.

Como ocorreu com tantos estudantes da geração passada, quem, nos primórdios dos seus estudos, leu Iracema, de José de Alencar, e se encantou com os primeiros capítulos iniciais – o primeiro e o segundo? Não sei se nos dias de hoje, onde prevalece a inteligência artificial, a tal IA, ainda se leem esses poemas em prosa do romantismo: “Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba. Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros.” (Capítulo I) “Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como o seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.” (Capítulo II) Sobressai-se a imaginação poética do romancista José de Alencar, ao transfigurar, numa linguagem romântica, os verdes mares bravios, clamando: “Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.” A doce índia Iracema, a virgem dos lábios de mel, é mitificada pelo romancista cearense.

A linguagem poética tem esse significado transformador. Com ela a realidade está na essência da verdade, mas a verdade do poeta, quer o meio seja um poema, um conto, um romance, ou a crueldade dos fatos narrados como o fez Euclides da Cunha, na sua célebre obra Os Sertões, onde a luta do ser humano se faz presente, na essência das agruras de vencer as intempéries do sertão, das incompreensões do latifundiário e da força devastadora do exército brasileiro. Daí ter dito Euclides da Cunha, em um dos momentos da narrativa, esta belíssima frase que expressa toda poesia de um ser humano sofrido, mas lutador: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.”

A poesia, seja ela narrativa ou em versos, traduz desencantos e encantos. Nos tempos de escola primária e ginasial, quando se lia, e os textos eram discutidos, em certo momento (e ainda continuo), fui fã de carteirinha do poeta Manuel Bandeira, também um excelente cronista. E como revisor de uma editora no Rio de Janeiro, tive oportunidade de ler seus poemas e suas

crônicas. Todas, produções poéticas excelentes. Mas ficou cravado na minha embevecida memória um dos seus poemas que ilustrava a capa do livro. É o soneto Desencanto. Estruturado numa dialética de sentimentos, a expressarem as aflições poéticas de Manuel Bandeira. Diz o poema: Eu faço versos como quem chora / De desalento. . . de desencanto. . . / Fecha o meu livro, se por agora / Não tens motivo nenhum de pranto. / Meu verso é sangue. Volúpia ardente… / Tristeza esparsa… remorso vão… / Dói-me nas veias. Amargo e quente, / Cai, gota a gota, do coração.” (…) E conclui: “- Eu faço versos como quem morre.” O poeta Manuel Bandeira diz que o seu fazer poético é um meio de exaurir o seu sofrimento. Nesse afã, ele conclui: que faz versos como quem morre.

O encanto e o desencanto constituem elementos ficcionais e subjetivos do poeta. A poética extrai esses sentimentos contraditórios da vida. Um dos poemas encantados por esses desencontros e que encanta quem o lê, é Motivo, de Cecília Meireles. Nele a poeta traduz todos os seus sentimentos de ser ou não ser, quando diz: “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste / sou poeta. (…) Sei que canto. E a canção é tudo. / Tem sangue eterno a asa ritmada. / E um dia sei que estarei mudo: / – mais nada.” Por isso, tenho sempre dito que ser poeta não é apenas versejar. É, na essência, sentimentalizar poeticamente, sob fluxo da poesia, todos os sentimentos pessoais ou não, ainda que com as contradições dos encantos e dos desencantos.

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