A rua da minha saudade
Era uma terça-feira. Dessas que o sol nasce com uma timidez amarelada e, logo, logo, espraia a sua forte luz, a nos convidar a sair e caminhar pela rua. Embora, ainda cedo, acalentava-me pelas canções românticas de Moacyr Franco, que ainda insiste em nos fazer sonhar no canto inesquecível de Eu nunca mais vou te […]
Era uma terça-feira. Dessas que o sol nasce com uma timidez amarelada e, logo, logo, espraia a sua forte luz, a nos convidar a sair e caminhar pela rua. Embora, ainda cedo, acalentava-me pelas canções românticas de Moacyr Franco, que ainda insiste em nos fazer sonhar no canto inesquecível de Eu nunca mais vou te esquecer, Suave é a noite, Doce amargura, Cartas na mesa, Eu amo tanto, tanto, Balada do amor sublime, Pobre Elisa, Dai-me um luar; este, em contraste com o sol do amanhecer, entoa a súplica de ser necessário o luar, por ser a noite fria e a rua tão sombria, e, com o romantismo da noite de luar, o poeta quer escutar as canções de amor mais belas e os violões, sob todas as janelas. Afetado por todos esses sentimentos, não ofereci resistência a esse irrecusável convite. Saí pela rua estreita, infinitamente comprida. Íngreme. E andar por ela fora sempre uma eternidade. Um sentimento de não acabar. Lá no fim, uma área descampada. Nesse sagrado espaço, as crianças e os não mais crianças se encontravam no cair da tarde, em fins de semana ou não, para jogar bola: no jogo dividido. Dois ou três de um lado, e o mesmo tanto do outro. E a bola de borracha ou de seringa a rolar nos pés dos mais hábeis, ou de alguns frágeis chutadores, que maltratavam a esfera e a canela dos jogadores. Na barreira: os times ansiosos a esperar a saída do perdedor para entrar na disputa de outra partida. Nesse descampado, praticavam-se outras espécies lúdicas e de excitantes brincadeiras, como empinar papagaio e o jogo de bolinha. Tudo se reduzia a um encontro de festa, numa tosca ágora, enfeitada pelos risos, pela descontração, pela disputa, pelas galhofas, pelo enfrentamento no braço, para compor passageiros desentendimentos. A fraternidade era o ingrediente do amor. Nada de Zé Trovão; a educação familiar exigia o tempero do amor.
Essa rua – uma rua típica. Com pessoas típicas, que gostavam de sentar à porta para conversar. Depois, recolhiam-se para fazer a janta e retornar mais tarde, sob a luz da lua e do piscar das estrelas, quando davam prosseguimento à conversa iniciada durante o dia, pelas frestas das cercas de varinhas.
Conversas sem censuras. Alguns, muito bem informados, traziam a lume detalhes que só a Rádio Ribamar, a emissora do Apicum, tinha condão de saber. A liberdade era um direito de extrema fundamentalidade. Falava-se de tudo. Mas um dos temas imprescindíveis: a vida alheia. Sem ele, a conversa perdia muito da sua essência e naturalidade. Ao andar por essa rua, o pensamento voa. Pensa-se e anda-se. Vai-se andando pensando. Veem-se as pessoas como pessoas. Também se imaginam as pessoas e todas as suas contradições. Seus infinitos problemas. A amizade fraterna equilibra as diferenças. Há naturalmente os encontros e desencontros. Multiplica-se o amor acima das desavenças. Não chega a ser uma rua plenamente fraterna, mas chega bem pertinho dessa humana possibilidade. Há, sim, retifica-se, excluindo a cruel dúvida, essa possibilidade de ser fraterna. Por isso, a fome sempre expurgada pela solidariedade, já que o vizinho passa sempre pela cerca, pela força do amor fraterno, um prato de comida, que ajuda a mitigar essa necessidade material, dando à vida o sentido amoroso do viver.
Como surgiu esse paraíso? No perder do tempo. De uma antiga quinta, diziam, com uma casinha rústica a acomodar do sol e da chuva o seu antigo morador. Foi surgindo uma casa aqui, outra ali. Depois enfileiraram-se uma ao lado da outra, com amplos e arborizados quintais, onde os papagaios, as conhecidas pipas, viviam a sua última quimera. Com o tempo, os quintais foram perdendo espaço. Diminuindo. De cerca de varinha para muro. Ainda assim, as pessoas continuaram a insistir em amar-se. Vivem das suas alegrias e sofrências.
A rua, como qualquer personagem da vida ou da criação ficcional, de índole subjetiva, vai morrendo, ou as pessoas é que
vão morrendo. Não é a mesma. Ela morre com as pessoas, e as pessoas morrem com ela. Há uma reciprocidade vivencial e de alguma morbidez temporal, que descamba para o fim dessa relação amorosa.
D. Deja, uma das suas personagens – diziam – aconchegava-se numa casa de palha. Lugar ermo. Quase ninguém nas imediações. Adiante, um cajueiro sombroso, onde, nas tardes de sol, costumam conversar, recebendo no rosto o vento forte a amenizar o calor. Duas filhas. Uma mais nova que a outra. Claro. Não são gêmeas, embora se pareçam muito. Fruto da sua convivência com um grande cantador de bumba-meu-boi. Casa de chão batido e porta de meaçaba. À noite, vendia frutas até a hora de recolher-se. Certa vez, já um pouco tarde olhou pro rumo do cajueiro, lá estava pastando um burro de um carroceiro, que ali o deixava, após a azáfama do dia, para pastar e descansar sob a copa frondosa daquela árvore. Noite clara. O reflexo da lua projetava uma luminosidade que rompia a escuridão. Sentada à porta, aguarda algum freguês. Nada. Casas distantes uma das outras e separadas pelo mato nativo. Caminho de chão de terra, feito pelo passar do transeunte e dos animais.
Mais tarde, volta a olhar pro rumo do cajueiro. No lugar do animal, um caixão de defunto. Aperreia-se. Toma pé da situação. As meninas dentro da casa, no primeiro sono. Entra, põe as coisas pra dentro. Fecha a porta de meaçaba. E começa a ouvir um barulho lúgubre que se aproxima da casa. Junta-se em proteção às filhas. Reza a Deus e a todos os santos. Pede amparo. O barulho cada vez mais forte se aproxima da casa, como se tivessem arrastando alguma coisa muito pesada. O chão treme. Agarra-se às meninas. E a coisa pesada, arrastada e barulhenta vai passando. O corpo treme. O medo é contido na defesa e proteção das filhas.
A rua é assim. Cheia de mistérios, como sua gente. De encantos e desencantos. Mais tarde, também de desencontros.
Nela, tantos risos e tantos choros.
Nela, tantas gentes, tantas vidas, tantas
e tantas mortes.
Tantas histórias alegres e tristes.
No contraste do errado e do certo.
Do amor e do ódio. Do nada e do ser.