A Proteção da Vulnerabilidade e a Dignidade
Aureliano Neto – Membro da AML e AIL. aurineto@hotmail.com
Até aqui, uma longa caminhada, e ainda estamos a percorrer, como fez Cristo, um longo e tormentoso caminho, para o consumidor (art. 2º do CDC) ter a efetiva proteção da sua vulnerabilidade. Historicamente, tem-se informação que as Ordenações Filipinas continham normas de proteção ao consumidor, cuja sanção, para o transgressor, era de natureza penal. A sua finalidade era intimidativa. Na Constituição de 1934, há referência a direitos do consumidor, ao fixar a Lei Magna a competência da União para legislar. Porém a consagração máxima se deu com a Constituição de 1988, que erigiu essa proteção à categoria de direito fundamental, albergando no Título II, Capítulo I, dos direitos e deveres individuais e coletivos, no art. 5º, inciso XXXII, a defesa do consumidor, ao determinar que o Estado a promoverá, na forma da lei.
E não é só. Em algumas passagens fundamentais da nossa Carta Republicana, estão regras que dão sustentação à defesa desse sujeito de direitos subjetivos, que, na relação consumerista, é a parte, por ser vulnerável, a precisar ser protegida. Além dessa fundamental regra de proteção, há outras que têm como centralidade a figura do consumidor, como ocorre com art. 170, inciso V, que, ao estabelecer os princípios gerais da atividade econômica, cujo escopo assegura a todos existência digna, inclui a defesa do consumidor. E o art. 24, inciso V, que dispõe sobre a competência legislativa concorrente (União, Estados e Distrito Federal), referente à produção e ao consumo.
A partir do exame dessas normas constitucionais, aditando-se a esse entendimento o princípio maior – espécie de superprincípio -, que não pode, nem deve ser ignorado, visto ser fundamento maior da República brasileira, há a proteção da pessoa, por força da centralidade principiológica da dignidade da pessoa humana. Nesse caminhar, como ensina Antônio Carlos Efing, em sua erudita obra Contratos e Procedimentos Bancários à luz do Código de Defesa do Consumidor, Revista dos Tribunais, 3. ed., 2015, p. 42, a
“conseqüência direta dessa tutela constitucional do consumidor é reputarem-se inconstitucionais e incompatíveis com a atual ordem jurídica todas e quaisquer normas infraconstitucionais que visem a obstaculizar a defesa dos direitos do consumidor”. Como decorrência, o ser humano, como pessoa de direito, passa a ser o centro das atenções, quanto aos seus direitos, referentemente ao Estado, como legislador ordinário, bem como no exercício da função jurisdicional. Isso em razão de que o constituinte brasileiro reconheceu a vulnerabilidade do consumidor e a necessidade de sua proteção, instituindo essa preocupação não só no art. 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal, mas no art. 170, inciso V, como fundamento da dignidade da pessoa humana e da ordem econômica.
Em estudo publicado em Migalhas, por Gabriel Alves Fonseca (Pesquisador do NCPC (PPGD-UFPR), consta esse didático esclarecimento: “A fim de efetivar a dignidade e a igualdade material dos consumidores perante os fornecedores, o Código de Defesa do Consumidor traz, a título exemplificativo, disposições que visam: (1) ao ‘reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo’ (artigo 4º, inciso I); (2) ao ‘equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores’ (artigo 4º, inciso III); (3) à positivação de uma série de direitos básicos aos consumidores (artigo 6º, caput), não exaustivos; (4) ao critério hermenêutico segundo o qual ‘as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor’ (artigo 47), em uma exceção justificada à presunção geral de simetria entre os contratantes.”
Nessa perspectiva, é que entendo que a Súmula nº 381 do STJ, que estabelece limite quanto à declaração de nulidade de cláusula contratual abusiva, é inconstitucional, porquanto cria um sério obstáculo à defesa do consumidor, ferindo o direito fundamental deste, que, conforme lição de José Afonso da Silva, foi alçado à categoria de titular de direitos constitucionais
fundamentais. Por isso mesmo, entendo que, em razão desses fundamentos, ao serem dirimidas questões relacionadas a consumo, as regras e os princípios, como os direitos básicos do consumidor (art. 6º, CDC), não podem ser tergiversados, sob pena de se estar negando vigência à Constituição Federal.
O direito como regra de convivência não deve fugir do seu mundo – o mundo que tem como centralidade o ser humano e sua dignidade. Cai por terra, com o exaurimento da pacta sunt servanda, o velho axioma de que o contrato faz lei entre as partes. O que faz lei entre as partes é a livre e consciente manifestação da vontade. Daí a cláusula rebus sic stantibus, que serve para corrigir, entre outros males, a onerosidade excessiva, ou os abusos contratuais, decorrentes dessa ânsia desenfreada do ganho à custa das necessidades do mais carente.