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Enquanto houver boi no Maranhão, o capitalismo não venceu

Silvia Federici, em o “Ponto Zero da Revolução”, argumenta que os programas de ajuste estrutural de organizações internacionais, com condicionantes de reordenação dos modos de trabalho e produção em troca de financiamento tem sido, desde os anos oitenta, uma frente de disputa do capitalismo contra a vida dos comuns. Populações nas Américas e África têm […]

Silvia Federici, em o “Ponto Zero da Revolução”, argumenta que os programas de ajuste estrutural de organizações internacionais, com condicionantes de reordenação dos modos de trabalho e produção em troca de financiamento tem sido, desde os anos oitenta, uma frente de disputa do capitalismo contra a vida dos comuns.

Populações nas Américas e África têm resistido a essa nova era de acumulação de capital que visa a expropriação não apenas do território, mas também do modo de viver das pessoas.

Esse argumento tem ressoado na minha lembrança nos últimos dias em São Luís, pois, apesar dos oito anos vivendo na ilha, ter me afastado dela por alguns meses aguçou a percepção de grandeza do São João. Me parece que o bumba meu boi maranhense é, antes de tudo, uma das trincheiras contra o capitalismo num cenário de avanço neoliberal.

É uma trincheira no sentido de que os brincantes desafiam a lógica capitalista ao viver as noites juninas em busca do que não dá lucro, não tem valor para a acumulação de capital e que é impossível de ser homogeneizado, porque diz respeito à singularidade radical de cada sujeito que brinca.

O bumba meu boi é uma reivindicação de humanidade, dos sentidos particulares a cada um que sai de sua casa para atravessar horas e quilômetros de dança e festa. Seja para quem pratica o sagrado, seja para quem pratica o profano, a fenda no tempo-espaço se abre e o capitalismo não pode nos massacrar por algum tempo. Na capela de São Pedro os grandes conglomerados econômicos não têm poder algum sobre aqueles que testemunham a tempestade sonora das matracas, na Casa das Minas nenhum bilionário pode decidir sobre nossas vidas enquanto contemplamos uma cajazeira centenária, e, enquanto seguimos o boi de Santa Fé subir a rua de São Pantaleão ao nascer do sol, somos gente, como quem nasce em Bacurau.

Para o neoliberalismo, a face mais recente do capital, a racionalidade do cálculo de menor custo e maior benefício é a explicação para as decisões do indivíduo econômico, assim, as pessoas guiariam suas vidas a partir dos incentivos e restrições que o Estado e o Mercado estabelecem, em busca da maximização dos lucros.

Essa ficção cai por terra diante de qualquer brincante de bumba meu boi, cuja racionalidade é muito mais sofisticada porque dá conta de uma dimensão que desfaz a divisão Estado, Mercado e Sociedade, tão cara aos teóricos na Europa do século XX. A vida no Maranhão é mais complexa que o didatismo europeu, abrindo lugar para a comunhão de desconhecidos, para a sociabilidade e vínculos afetivos, desafiando a lógica rentista.

Não se comercializa essa experiência, que escapa da mão invisível do mercado porque o que a conduz é o desejo. Mas não se engane, não se trata do desejar incessante, mortífero e esfomeado que o capitalismo propõe, mas sim do desejo que aponta para a vida, que cria e produz instantes de esplendor e satisfação, abrindo espaço para a falta, e, portanto, para o deslocamento, para o movimento desejante.
Enquanto houver bumba meu boi no Maranhão, o capitalismo não venceu. Apesar da destruição da natureza e dos povos, da tentativa de reduzir todos nós a consumidores, as noites maranhenses de junho nos lembram que há o inexplicável da vida, que mesmo nas condições mais inóspitas, os seres humanos seguem sonhando, e contra todas as apostas, seguimos desejantes de viver.

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