A reforma das reformas
A facilidade com que mudamos de constituição e as emendamos, ao sabor de eventuais necessidades, é responsável pelo descrédito do povo. Para a grande massa popular, qual o significado de Lei Fundamental que desconhece, e de cujas garantias raras vezes se beneficia? A minoria letrada não a leu e, ao tentar lê-la, não a entendeu. […]
A facilidade com que mudamos de constituição e as emendamos, ao sabor de eventuais necessidades, é responsável pelo descrédito do povo. Para a grande massa popular, qual o significado de Lei Fundamental que desconhece, e de cujas garantias raras vezes se beneficia? A minoria letrada não a leu e, ao tentar lê-la, não a entendeu. O povo-massa, segundo a expressão de Oliveira Viana, ignora-lhe a existência, as raízes, o alcance.
A inflação de emendas inoculadas na Constituição de 1988 acabou por reduzi-la à modalidade excêntrica de lei ordinária. O problema nasce da prolixidade que dela fez a segunda ou a terceira do mundo em tamanho. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), com o passar dos anos, se tornou definitivo, uma espécie de agregado cuja perenidade o incompatibiliza com a natureza de algo passageiro.
A síntese da Constituição não está no preâmbulo, redigido com as tintas da utopia. A alma era encontrada no texto deixado pelo dr. Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, impresso em raros exemplares da primeira edição do Senado. Não me furto à tentação de transcrever os parágrafos iniciais: “A Constituição Coragem. O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o país. Diferentemente das sete constituições anteriores, começa com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a constituição cidadã”.
Não temos Constituição como a conhecem americanos e ingleses. A oitava da série iniciada com a Carta de Lei de 25/3/1824, outorgada por D. Pedro I, ou sétima do período republicano, ultrapassou em durabilidade as constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969. Em número de remendos, porém, supera todas que a precederam; são 99 à espera da emenda nº 100, relativa à reforma da Previdência.
A fragilidade da Norma Fundamental contamina as demais legislações. Vejam-se a Lei nº 8.212, sobre a organização da Seguridade Social e o plano de custeio, e a sua irmã gêmea, a Lei nº 8.213, relativa aos benefícios, sancionadas pelo presidente Fernando Collor em 24/7/1991. Serão ambas atingidas pela promulgação da PEC 29/2019, em futuro incerto e não sabido.
Profundas alterações do texto constitucional obrigarão o Poder Legislativo a se revolver em esforços de adaptação da legislação ordinária. Na mesma situação encontrará o Decreto nº 3.048, de 6/5/1999, que aprovou a Regulamentação da Previdência Social.
Embutir a seguridade social como título VIII na Constituição, com extensos capítulos destinados à saúde, à previdência social, à educação, à cultura, ao desporto, à ciência, tecnologia e inovação, à comunicação social, ao meio ambiente, à família, à criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso, aos índios, além de violar os princípios da boa técnica constitucional, foi excesso de demagogia populista. A Lei Orgânica da Previdência Social (Lei nº 3.807/1960), fundada no art. 156, XVI da Constituição de 1946, assegurava aos beneficiários “os meios indispensáveis de manutenção, por motivo de idade avançada, incapacidade, tempo de serviço, prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente, bem como a prestação de serviços que visem à proteção de sua saúde e concorram para o seu bem-estar”. Para reformá-la bastava simples decreto.
Para quem defende a constitucionalização da Previdência Social, lembro que garantir direitos na Constituição não significa que estarão assegurados. A expressão “na forma da lei”, utilizada em dispositivos constitucionais, é a válvula de segurança colocada com o propósito de evitar a concretização de direitos deferidos em tese, por falta de regulamentação.
O arrojado projeto remetido pelo ministro Paulo Guedes ao presidente Jair Bolsonaro apoia-se em pilares fundamentais como o combate a fraude, redução da judicialização, cobrança das dívidas tributárias previdenciárias; equidade, instituição de regime de capitalização. Basta ver o número de artigos e parágrafos criados, revogados e alterados na Constituição, no ADCT, em três Emendas anteriores.
A corajosa proposta, se obtiver êxito, resultará na maior transformação desde a Lei Orgânica da Previdência Social, de 26/8/1960. Creio que o governo encontrou o caminho certo. Não nos esqueçamos, porém, de que do sucesso da reforma dependerá a retomada do crescimento.