opinião

Os fatos, segundo a verdade

Alexandre Maia Lago – Membro da AML e ALL

O clamor da mídia tradicional pelo respeito à liberdade de expressão, ética, princípio da objetividade, compromisso com a verdade acima de tudo e outros clássicos, trazem-me à mente um enredo protagonizado por um célebre veterano da comunicação que, numa palestra a jovens recém-formados, por alguma razão, subitamente, resolvesse sintetizar àqueles jovens o que aprendera em tão longa caminhada pelo mundo.

Após o anúncio de seu nome e os aplausos, ele iniciaria:

– Vou lhes contar um caso… Nos anos 50, um desatento correspondente internacional enviado a uma pequena república com a finalidade de averiguar boatos de instabilidade política distraiu-se e chegou ao destino errado. Admirou-se com a calmaria de província, a tranquilidade dos transeuntes, crianças brincando em parquinhos, velhos conversando nos bancos de praças… Nenhum vestígio das coisas que se especulavam na imprensa do seu país. Mas, não estando a passeio e tendo que enviar informações à redação do jornal, pegou a máquina de escrever e pôs-se a trabalhar…

Começou descrevendo uma tensão no ar, percebida logo no aeroporto sob forte aparato militar, bagagens devassadas, olhares hostis e, ao longe, estrondos que lhe pareceram de morteiros…

Os jornais concorrentes, surpreendidos, replicaram o conteúdo, disfarçando o plágio com sutis variações sintáticas. Em seguida, mandaram seus próprios correspondentes ao país da conflagração. A partir daí, não houve má notícia que não fosse suplantada por uma pior no dia seguinte.

No correr das semanas, ávidos leitores vidraram os olhos numa espécie de olimpíada de manchetes escandalosas. E, em nome da boa informação, o público ficou sabendo dos carros blindados pelas ruas da distante nação, população à mercê de franco-atiradores, comércio e repartições públicas fechados, prisões em massa, barricadas, o povo clamando por respeito às leis, matanças à luz do dia, colapso do Estado…

Certa manhã, o mundo soube da fuga do presidente. A nota de desmentido, lida por ele próprio no gabinete presidencial, não pôde ser publicada, por falta de espaço… E perdeu importância diante do “Caso do Menino Mártir”, que deu início a uma comoção mundial. A imprensa esclareceu a história. O garotinho “apenas pedia paz” ao ser despedaçado por uma bala de canhão, bem ao lado da janela do hotel de onde o jornalista, arriscando a própria vida, cobriu tudo. Um horror!

Depois de longa pausa do palestrante, ele diria:

– Vou lhes fazer uma revelação, meus jovens futuros colegas. Essas alarmantes notícias não eram reais. Nenhuma sequer. Mas os investidores externos e os produtores internos eram, e não lhes restou alternativa, senão, buscar segurança patrimonial em países estáveis. As instituições abalaram-se, e as Forças Armadas, avaliando o quadro caótico, saíram dos quartéis. Guerra civil. Banho de sangue. Agora, de verdade. Hoje, quatro décadas depois, o país ainda tenta, em vão, se recuperar. Consta que continua sem norte.

– Moral da história – concluiria – Nós, da mídia, temos milagroso poder acerca da feição, e mesmo da existência, dos fatos. Somos uma espécie de gênio criativo diante de uma tela em branco. É saber usar os pincéis. Mas de acordo com a vontade do dono dos pincéis e da tela, naturalmente… Alguma pergunta?

Silenciosos segundos, e um braço timidamente levantado na plateia prenunciaria uma contestação, hesitante, quase medrosa:

– Mestre, e onde fica a verdade dos fatos?

– Ainda há lugar vazio no auditório. Quando ela chegar, pode sentar-se em qualquer um deles – responderia com naturalidade, passando à próxima pergunta, pois outros braços já estariam levantados.

Alguém, que certamente não entendesse o espírito da primeira resposta, indagaria se, em nome da consciência limpa, esse procedimento desonesto poderia ser recusado.

– Sim, é claro que pode. E os donos da grande mídia respeitam essa posição, de tal modo que mantêm os departamentos de pessoal das suas empresas, nos quais, após a recusa, o jornalista passará honrosa e honestamente pra receber o último pagamento antes de desocupar seu birô, esvaziar as gavetas e sair, dando lugar a um novo contratado.

Um ouvinte, desafiador, advertiria que no país ainda havia Justiça, instrumento maior contra abusos, mesmo da grande imprensa, e podia-se recorrer, também, aos organismos internacionais…

– Temos um poeta entre nós. Isso concede certo charme ao grupo, reconheço – diria o veterano mestre, candidamente.

Na sequência, ele revelaria que as melhores coberturas de guerra são as realizadas em aprazíveis salas. – O ambiente confortável e seguro contribui com a boa imaginação.

Orientaria, didaticamente, quão louvável seria invocar a Constituição, o direito da sociedade à informação, o interesse público…

– Os clichês de sempre, meus jovens.

Exortaria a importância de replicar o conteúdo dos impressos nos telejornais, fazendo análises tendenciosas.

– Nessa hora, carreguem de indignação o texto ou a voz, conforme o veículo de divulgação. Semblante sisudo, solene, a fim de transpirar conteúdo e domínio do assunto. Causa impressão. Incluam os Direitos Humanos nisso, pois evoca legitimidade universal e angaria simpatia.

À maneira de um professor dando macetes para prova, aconselharia a, sempre que possível, soltar uma frase de impacto contra regimes de exceção e seus ditadores:

– Isso rende boa retórica sobre democracia. Mas, de preferência, tratem dos que já estejam nos livros de História ou então do Oriente Médio pra lá…

Um jovem aspirante, sem se preocupar com a própria empresa de comunicação onde o evento ocorria, alfinetando, indagaria se, dentre essas ditaduras, poderia ser incluída a nossa última, que teve o apoio irrestrito da imprensa.

– Principalmente nesse caso – responderia o mestre, estalando o polegar, como se tivesse lembrado de algo essencial. – Falar e falar mal dela constantemente dará a sensação de que nunca tivemos nada com isso…

Explicando essas e outras lições básicas, o palestrante amaciaria a severa prática com suave filosofia. Em tom ameno, minguante, de quem contasse uma história infantil, confessaria que ele próprio, um dia, creu na mídia, pois também foi criança…

Arrematando, lembraria que o fato é apenas um, os ângulos podem ser mil.

– Dar colorido às notícias tem o efeito dos fogos de artifício, meus filhos: mantém os olhares admirados, distraídos fitando o céu, enquanto cuidamos da versão mais adequada para a verdade.

Ao final, agradeceria a atenção, desejando a todos sucesso na profissão e lembraria:

– Não esqueçam, o importante é a fiel e crédula audiência continuar crendo que somos o que eles pensam que somos…

E sairia, a consciência leve como nunca antes.

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