O veneno das paixões políticas
Alexandre Maia Lago – Membro da AML e ALL
Da cidade de Codó, vem a imagem de duas mulheres engalfinhando-se na porta de um comitê eleitoral, trocando, entre si, palavrões, insultos e pedradas (de pedras mesmo). Em outra cidade, vestidos de azul, partidários de um candidato ensaiam uma dancinha, praticando democracia. Distante dali, simpatizantes de outro candidato, camisetas de cor laranja, também dançam. Em seguida, uns desgarrados encontram-se casualmente. Bastou uma troca de considerações recíprocas com os nomes dos candidatos, para seus apoiadores exercitarem a dialética dos socos e pontapés.
Nos dois episódios, não restou clara a natureza ideológica das divergências. Também desconhecemos as qualidades dos estadistas que levaram seus liderados a tais extremos. Discordância entre teóricos é coisa comum. E no caso das ideólogas de Codó, o fato de terem rolado pelo chão representou bem o atual patamar da política brasileira.
Max Weber objetava positivistas, iluministas bradavam derrocadas de monarquias, trotskistas, stalinistas e maoístas abominaram-se com vigor, por quatro décadas. Assim, muitos marxistas que nunca leram Marx altercaram com capitalistas convictos que ignoravam ter existido algum Adam Smith à maneira como atualmente contendores usam “fascista” e “esquerdista” para os de opiniões contrárias às suas, ainda que o assunto seja futebol.
Paixões políticas, veneno até para os mais pacatos espíritos, superam as da religião. Um sujeito aceita, de bom grado, o vizinho professar crença religiosa distinta da sua, mas é capaz de irritar-se facilmente com os elogios que o morador do fim da rua teça ao líder de outro partido político. Assentando-se em subjetividades que têm a ver com o etéreo, a religião de terceiros é admissível. Porém, ouvir uma discordância de opção política soa como colocar-se em degrau intelectual inferior, ou mesmo, atribuir-lhe um vício de caráter.
Eu suspeito que o motivo subjacente a esse gênero de querela seja menos a causa defendida do que o melindre pela opinião contestada. Vulcões recônditos podem ser despertados no ânimo de um obscuro cabo eleitoral da pacata Satubinha, ou de um grave decano da Academia Francesa.
Clássico exemplo disso, foi a célebre contenda entre dois ilustres escritores que estremeceu ânimos nas ruas de Paris dos anos 50 do século passado. Afinidades intelectuais e profissionais uniam Sartre e Camus. Ambos jornalistas, romancistas, habitués aos fervilhantes círculos pensantes parisienses. O primeiro, louvado filósofo, eloquente, engajado politicamente, sempre circundado de seguidores. O segundo, tímido, reservado, refratário a protagonismos, contentava-se em gozar a vida noturna sem alardes. “O melhor representante na nova literatura na França”, disse Sartre, em 1945, sobre o amigo a uma plateia nos Estados Unidos.
Foi coisa banal a contestação incisiva, porém, educada de Camus a uma opinião do mestre durante uma mesa-redonda, à vista de um seleto público. Não tardaram a multiplicar-se as discordâncias, então pelos jornais, lançando fagulhas ameaçadoras rumo ao paiol. E logo as opiniões não estavam depreciando apenas as ideias do oponente, mas os próprios oponentes.
Para Sartre, era inadmissível que ele, oriundo da prestigiosa Ecole Normale Supérieure, ostentando a posição de filósofo de afamado e mestre escola, satisfeito guru sempre requisitado a opinar sobre o mundo, referência do establishment intelectual, pudesse receber reparos de alguém de precária formação acadêmica em uma obscura faculdade argelina.
A grandeza vocabular dos cíceros e catões, cedendo ao fígado, ia roçando no latim vulgar, e “moleque de rua” incluiu-se entre os adjetivos do filósofo para se referir a Camus por este não concordar com “a verdade.” E a “a verdade”, no caso, era que o mundo seria feliz e justo quando seguisse o “modelo idílico”, a União Soviética stalinista, caminho inescapável para a humanidade e pelo qual os intelectuais tinham dever de lutar. Opor-se a isso seria admitir vassalagem a escusos interesses.
Camus recuou. Dos meios jornalísticos e literários, experimentou o isolamento, rarearam os convites de praxe, o mundo editorial de esquerda virou-lhe o rosto, baniram-no das rodas. O cancelamento da época. Em carta à esposa, disse estar assombrado com os ódios de defensores de bandeiras tão simpáticas…
Os dois nunca mais se falariam. Tornar-se-iam consagrados. O francês legaria obra filosófica exuberante e seria marcante presença nos movimentos sociais e políticos que agitaram a França dos anos 60. Mas seus romances, impregnados de sua militância e com sabor de má-filosofia, desconheceu leitores. O franco-argelino fez o que a literatura exigia desde séculos: contou histórias apenas. Destinadas a perenidade, por meio delas o mundo desfrutou de uma charmosa filosofia, plena de advertências implícitas, lições políticas sem data de validade nem clichês, mal de que padecem as literaturas panfletárias, com raras exceções.
A Academia Sueca concedeu-lhes o Nobel de Literatura. Camus o recebeu, dizendo-se extremamente honrado. Sartre esnobou a mais cobiçada honraria, tudo levando a crer que em razão de desafeto ter sido laureado sete anos antes dele.
Quanto ao ponto de vista correto, a História parece haver dado resposta inequívoca. O grande existencialista, sabedor de conceitos e temas profundos, desconheceu uma obviedade: a de que sistemas perfeitos sempre serão aqueles inalcançados, quimeras eternamente buscadas, paraísos intangíveis. Todos com sabor de banquetes de que nunca participamos.
Hoje, as cenas de comportamentos irascíveis em torno de temáticas políticas, seja na província ou na metrópole, continuam dando demonstrações da linha tênue que separa razão e paixão. Apenas o nível anda em queda livre, e com bola de ferro atada aos pés.