MUNDO CÃO
Alexandre Maia Lago – Membro da AML e ALL
– Tá vendo aquele menininho ali?, disse a senhora, e da janela do carro, apontou uma criança sob o semáforo, mão estendida à espera de moeda, – Se você não almoçar bem, escovar os dentes, tomar banho e cortar as unhas, vai ficar igual a ele. Olhando aparvalhado pro menininho, não se sabe o que Lulu pensou a respeito do sermão. Se falasse, bem poderia dizer não haver motivos para tanto, pois nem se comportava mal. Era até ligeiramente tímido e latia pouco…
A cena pode afigurar-se fictícia, mas é absolutamente possível. Não resta dúvida de que cachorros deixaram de ser um mero auxiliar do caçador, vigia atento ou distração eventual da casa. Foi-se o tempo em que arrodear churrascos ou perseguir calcanhar de pedestres eram impertinências resolvidas com um “passa cachorro”, seguido, se fosse o caso, de um discreto pontapé. Hoje em dia, isso dá processo. Quando se ouve a expressão “avanço dos cães”, é claro que não se está falando daquela ação que fazia os indivíduos saírem correndo, mas, sim, das conquistas sociais efetivas da afortunada espécie.
É incerto se cachorros ainda valem menos que crianças, pois, pelo que se vê, muitos deles se encontram mais bem cuidados que uma multidão delas, com salão de beleza, spa, brinquedoteca, hotel, plano de saúde, psicólogo, nutricionista, academia de ginástica, enfim, tudo a ponto de garantir o bem-estar. E não fica só nisso.
Casamentos e exéquias solenes também não são mais exclusividades de gente. Por essas e outras, nem me surpreendi ao saber da campanha “Nenhum cachorro sem lar”, cujos organizadores alegavam ser inaceitável um cão perambulando por aí, sem o aconchego e segurança de uma família. Talvez tenham razão. Criança de rua, ainda vá lá, mas cachorro, é ultrajante.
Quando pela primeira vez eu ouvi falar que a guarda compartilhada de cães estava sendo debatida em alguns tribunais, imaginei que estavam se referindo a alguma peça perdida de Molière que eu desconhecia. Não era. Tratava-se, disseram-me, de uma conquista civilizatória do Direito, e sob o prisma da melhor hermenêutica. Em todo caso, o enredo pareceu-me bom para um espetáculo. O cenário já é cerimonioso, e os atores, apesar de mambembes, são bem pagos.
Tamanho prestígio alcançaram esses animais que outro dia, num programa vespertino de TV, os apresentadores invocando a Evolução das Espécies, discorriam sobre evidências de o cachorro estar se tornando tão inteligente quanto o homem. Mais do que eles, com certeza. E, quem sabe, do que eu também, que parei para assistir.
Frequentemente, vemos celebridades, novos-ricos, e, por imitação, assalariados na corda-bamba, proporcionando aos cães aniversário com bolo, pipoca, presente, palhaço… O cão trajando camiseta e boné do time do dono, calça, macacão, exibindo colar, óculos, coroa, sapatos, fantasia de super-herói ou bailarina, indumentária sugerindo desconforto àqueles que as usam. Imagino que, se pudessem, os aniversariantes acusariam os donos de “bullying”. Outro dia, testemunhei casualmente um momento desses. No salão de festa, com tosas e lacinhos coloridos, cachorros brincavam. Nas mesas, outros, orgulhosos, contavam vantagens e travessuras de seus pets.
Suspeito que essa transferência de sentimentos é culpa de certos defeitos da Criação. Pois, até onde sabemos, cachorros não padecem das misérias da inveja, cobiça, ingratidão, avareza, não mentem, demonstram extrema fidelidade, e sem dúvida, preservam a dignidade de sua espécie mesmo convivendo com os humanos há séculos.
Ou será outro o motivo? Por exemplo, acompanhar uma moda da qual não se quer ficar de fora, poder sentir-se observado num degrau social superior, mostrando-se capaz de gastar com carrinho, pipo, fralda e passeio na Disney pra cachorro. Ou o extremoso zelo não significaria exatamente amor aos cães, senão, amor a si próprios? Afinal, passear com o cachorrinho é menos trabalhoso que enfrentar as demandas das crianças. Eles permitem o monólogo sem o incômodo dos questionamentos. Com eles, os donos podem filosofar com superioridade, e, às vezes, em pé de igualdade. Alguns humanos, por recomendação médica, têm encontrado, neles, bons companheiros. Únicos com paciência de ouvi-los e entendê-los sem se aborrecer. Imagina-se.
Alguém, talvez brincando, andou dizendo que, a continuar nesse ritmo, logo os cachorros terão acentos no Parlamento. Mas tenho sérias dúvidas se isso seria mesmo uma inovação necessária. Aguardemos.
Antes que vociferem, esclareço nada ter contra a “nação” canina. A observação é de aspecto puramente humanista.