Arte, resistência e amizade: 50 anos do Anjo da Guarda
O bairro traz consigo histórias de vida que tomam desde a infância à vida adulta. O serigrafista Zé Maria e o diretor de teatro Waldemir Nascimento são exemplos de quem cresceu, se desenvolveu e vive o Anjo da Guarda
“É como se fosse uma cidade”. Esta é a impressão do serigrafista José Maria dos Santos Nascimento sobre o bairro Anjo da Guarda. Quarenta dos cinquenta e oito anos de idade do ‘Zé Maria’, como é conhecido nas redondezas, foram vividos na área ‘abençoada’ pela estátua do Anjo Gabriel. “Tem banco, mercado, parque, praça, comércios. Igual aos lugares mais nobres, apesar de ser periferia”, comenta ele. Em 2018, o bairro celebra 50 anos de existência, trazendo junto a si vidas inteiras que se desenrolaram no seu seio.
A visão atual do serigrafista respeitado nada se parece com a impressão negativa de quando chegou ao local – um rapaz de 19 anos vindo de Urbano Santos. “Era só mato. Não tinha energia, era pior do que o interior. Muita gente acabava vindo para cá por ser mais barato.”, relata.
Na pulsação em que o distrito crescia, a vida de Zé Maria melhorava. Enquanto o Anjo da Guarda ganhava energia elétrica, Zé Maria deixava de ser cobrador de ônibus para assumir a pintura de muros na cidade. Hoje, o profissional é conhecido em toda São Luís pela qualidade de sua serigrafia – técnica de impressão em camisas. Em sua oficina localizada no coração do bairro, Zé Maria produz uma média de 500 unidades de camisas por mês.
Foi na vizinhança que Zé Maria conheceu Maria do Rosário. Oriunda de Olinda Nova, ela tinha uma história similar à sua. Do casamento entre os dois, vieram Bruno, 27, e Aline, 25, que nasceram, foram criados e educados na comunidade. Assim como Zé Maria, quatro de suas irmãs e irmãos encontraram no bairro, um lar. Com os filhos na soma, são 19 pessoas da mesma família vivendo na localidade.
Não muito longe dali, outras histórias de vida se entrelaçavam com a do Anjo da Guarda.
Waldemir Nascimento e a irmã Waldirene eram apenas crianças acompanhando seus pais quando chegaram de Cedral, no ano de 1975 e ali se acomodaram. Pela fama de perigoso, o bairro não era exatamente o local de brincadeiras dos dois irmãos. Mas foi lá, naquele reduto, onde Waldemir foi apresentado à paixão que mudaria sua vida. Praticamente na porta de sua casa, havia um grande areal onde os circos que chegavam à cidade se instalavam.
O estigma da violência ainda assombrou os moradores durante muito tempo. Na década de 80, a formação de gangues era comum e algumas se tornaram referências marcantes, como a ‘Turma do Rasga’. Em meio àquele contexto, em 1981, a luz do teatro passou a brilhar de forma mais presente no Anjo da Guarda – era a estreia do espetáculo da Via Sacra, do Grupo Grita, envolvendo a comunidade na arte e ainda hoje apresentado anualmente. Os tabus sobre a arte impediram Waldemir, sua irmã, e muitos outros de se aproximarem da montagem. “Teatro era coisa de vagabundo. Meus pais tinham essa visão por conta da educação que receberam, então a gente não se aproximou muito nessa época. Ainda é um meio marginalizado”, relata.
Um marco na história do bairro e na vida de Waldemir foi a criação do Centro Comunitário do Anjo da Guarda, em 1988. Com serviços oferecidos à população envolvendo saúde e educação, o Centro foi um ganho local. A Igreja Católica Nossa Senhora da Penha, localizada na Praça Central, também é tida como um marco positivo para a comunidade. Para Waldemir, o significado desta ainda é mais especial uma vez que foi lá que ele teve suas primeiras experiências como ator.
Os anos 90 trouxeram ao rapaz uma percepção mais forte do espaço onde vivia. Até então, era uma visão pessimista. “Como se alguém do Anjo da Guarda fosse menor. Era um bairro em que o morador seria um empregado de outro pelo resto da vida. Quando alguém que passava no vestibular, soltavam foguetes, cortavam cabelo.. eram quatro, doze, que passavam na universidade. Eu fui parte dessa pequena estatística”, conta ele.
Foi um dos grandes pontos de impacto sobre o bairro para Waldemir. A entrada no Grupo Grita e a participação como membro durante 5 anos contribuiu para solidificar a mudança de mente do artista. Após ele mesmo trilhar o caminho acadêmico, se formando na Universidade Federal do Maranhão – uma vizinha ‘distante’ da área Itaqui-Bacanga – ele deixa o grupo Grita para fundar sua própria companhia de teatro com o colega Renato Porto. “A faculdade ampliou minha visão e conhecimento e comecei a ver a área de outra forma”, conta ele.
A companhia Cambalhotas, que começou com ensaios na casa da mãe de Waldemir no ano de 97, recebeu o apoio e a familiaridade de uma rede de relacionamentos necessária para seu desenvolvimento. “Era tudo próximo. Faculdade, moradia e local para ensaiar. Mas quando tive condições, poderíamos ir para qualquer canto, mas continuamos aqui. E eu acho importante porque as pessoas conheciam a gente e muitas nos ajudaram. Aqui eu sabia onde o ferreiro, o serralheiro e o encanador estavam e o trabalho deles era necessário para a montagem de cenários”, ressalta.
Hoje, a Cambalhotas trabalha principalmente com o encanto do teatro-de-bonecos, circo e mágica. É formada por gente de todos os lugares, mas há um grupo de palhaços exclusivos do Anjo da Guarda. Sediada na Avenida Jenipapeiro, é vista com carinho pela comunidade, presenteada com a estreia gratuita de todos os espetáculos do grupo. A arte, ali do lado, é vista com naturalidade pelos moradores. No ensaio de um espetáculo cheio de música, as crianças vizinhas cantavam junto aos atores os versos divertidos do clássico Saltimbancos. “Nós, gatos, já nascemos pobres.. porém, já nascemos livres!”.
O teatro é uma das grandes pérolas do bairro. Marco cultural na história não só do Itaqui-Bacanga, mas de São Luís, é de lá o maior espetáculo a céu aberto do estado – a Via Sacra. Em março de 2018, a encenação realizada pela trigésima sétima vez foi vista por um público de aproximadamente 300 mil pessoas. Com o tema ‘Comunidade: Um terço de memória’, o espetáculo homenageou seus criadores e mantenedores – os moradores locais. A Via Sacra, que percorre 2km das vias do bairro, envolveu 1.500 pessoas do próprio distrito em seu processo de produção somente neste ano. E é uma das grandes bandeiras de orgulho do Anjo da Guarda.
Raio x do bairro
História
O bairro nasceu em 14 de outubro 1968, quando habitantes de uma comunidade chamada Goiabal ficaram desabrigados após um grande incêndio. De acordo com a Comissão Estadual de Transferência de População (CETRAP), 78 casas ficaram completamente destruídas e mais de 100 famílias ficaram desabrigadas. Estes foram remanejados para uma localidade chamada de Itapicuraíba, onde receberam roupas, alimentos e cobertores. O Itapicuraíba foi batizado de Vila Anjo da Guarda, que se tornou Bairro Anjo da Guarda devido ao rápido crescimento demográfico. Segundo registro jornalístico de O Imparcial, a icônica estátua que dá boas vindas a quem chega ao local foi esculpida por um padre italiano chamado Cherubino Luigi Dovera, também responsável pelo monumento do Roque Santeiro. Devido a ação dos vândalos, a estátua foi retirada em 1998 e só foi recolocada novamente em 2012, quando São Luís completou 400 anos, por reivindicação dos moradores.
IBGE – Informações oficiais
Segundo levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa da Cidade e Planejamento Rural e Urbano (INCID), o Anjo da Guarda é considerado um dos distritos da capital maranhense, formado pelos bairros Fumacê, Gancharia, Vila Bacanga, Vila Dom Luís, Vila Isabel e Anjo da Guarda. A pesquisa mais mais recente, realizada em 2010, aponta que haviam 39.030 residentes fixos no local na época, distribuídos em mais de 10 mil residências. Segundo informações do IBGE, os dados populacionais não são levantados pelos bairros, já que não há uma lei que especifica os limites desses, apenas em esfera municipal. O trabalho realizado pelo INCID foi baseado nos dados dos Agregados dos Setores Censitários do Censo Demográfico 2010, tarefa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).