BATOM, BLUSH E COTURNO

A nova coronel do Maranhão

Augusta Andrade é a segunda mulher na história a alcançar a patente de coronel da Polícia Militar do Maranhão

Reprodução

“O senhores estão autorizados a entrar. A coronel está esperando vocês”, informa o soldado de barba feita impecavelmente que habilita a entrada de civis na repartição. A sonoridade do artigo definido “a” antecedendo a mais alta patente militar é, infelizmente, incomum. O Microsoft Word equivocado no qual redijo o texto, insiste em me corrigir trocando-o por “o”. A conjugação ainda parece soar estranha aos ouvidos desavisados, apesar da mulher estar presente na Polícia Militar do Maranhão desde 1982, depois que um decreto criou o Pelotão Feminino, com a finalidade de orientar e proteger mulheres, crianças e idosos. “Após a entrada, vire a direita e siga pelo corredor até a sala da assessoria de comunicação”, explica o soldado de olhar atento à visita. O prédio imponente do Comando Geral da Polícia Militar do Maranhão, no bairro do Calhau, em São Luís, abisma pela suntuosidade e impecável organização, o que personifica a solidez de uma instituição que neste ano completa 181 anos e vive mais um momento histórico em sua biografia.

No caminho até a sala onde está marcada a entrevista, uma tropa perfilada rente a um estandarte faz o juramento às bandeiras trêmulas do Maranhão e Brasil, que pairam no ar. Do outro lado, no meio do pátio central, uma guarnição parece traçar estratégias de uma diligência que fará pela cidade. Viaturas com portas abertas e prontas para entrar em ação, metralhadoras em punho e algumas confabulações beligerantes, porém mansas, parecem ser formalidades por aqui. Há ainda várias salas com adesivos nominais nas portas, onde policiais com roupas mais leves e sem armas em punho realizam serviços burocráticos. Tudo funciona em uma serenidade que se desassemelha da realidade dos índices de segurança pública do estado. Dados de 2015 colocam o Maranhão no rol das cidades mais violentas do Brasil. Foram registradas 2.333 mortes violentas intencionais, uma taxa de 33,8 para cada 100 mil habitantes, segundo 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública – o índice nacional é de 28,6 mortes. A despeito da tranquilidade, a meta estabelecida pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), que determina redução de 5% dos Crimes Violentos Letais Intencionais para cada ano, está sendo alcançada por aqui. Na capital, houve uma redução de 25% dos CVLIs nos últimos dois anos.

“Sim, eles já chegaram”, fala ao telefone uma terceiro-sargento de aparente 30 e poucos anos que, assim como o soldado da portaria, tem os cabelos presos de maneira elegante e primorosa. Ela tem estatura baixa e riso fácil. “Tudo bem! Vou informá-los”, arremata e vira o rosto em nossa direção. “A Coronel Augusta pediu que eu leve vocês até sua sala. Vocês podem me acompanhar?” Ela gesticula e caminha com a placidez peculiar.

Em fila indiana, seguimos até o terceiro andar. Subindo as escadas, é possível ver helicópteros que surgem de trás das árvores e, em uma área contígua ao quarteirão que estamos, vários cães em adestramento estão ávidos à procura de uma bolinha. Pergunto a terceiro-sargento se ela sente alguma segregação por parte da corporação por ser mulher. “Não, nenhuma”, respondeu sucinta, enquanto nos aproximávamos da sala do Comando de Policiamento de Área Metropolitano 1 (CEPAM 1), que é responsável pela segurança nas áreas dos bairros do Olho D’água, Vila Luizão, Divineia e adjacências, em São Luís. “É aqui. Sejam bem-vindos! Qualquer outra demanda, estou à disposição”, despede-se sorridente a nossa guia.

Ao adentrar a sala do CEPAM, já é possível perceber uma mudança no ar: alguns cosméticos sob a mesa e um cheiro adocicado compõem o ambiente de paredes amareladas sobrepostas de quadros com a fotografia do governador do Estado. “Vocês vão editar depois, né?”, indaga a Coronel Maria Augusta Andrade que, prevendo a entrevista em vídeo, fez questão de trazer alguns de seus arrebiques. O batom roseado e o blush combinam perfeitamente com uniforme acinzentado. “É um momento histórico não só para mim, mas para todas as mulheres do Maranhão”, diz orgulhosa. Augusta é piauiense radicada em Caxias, cidade maranhense que faz fronteira com Teresina e onde, apesar da aproximação da capital do Piauí, “a vida é pacata”.

Em 1986, ainda cursando o terceiro ano do ensino médio no Colégio Aluízio de Azevedo, em Caxias, Augusta decidiu que seguiria a carreira militar. Foi em uma manhã de segunda-feira, durante uma aula de biologia, quando os alunos receberam uma visita inusitada. “Um senhor foi de sala em sala informando que o processo seletivo para soldado da polícia militar estava aberto”, relembra. Ali Augusta vislumbrou com entusiasmo uma grande oportunidade, logo ratificada por sua mãe, Dona Mariquinha. “Minha mãe aceitou na hora. Ficou feliz com minha escolha e me acompanhou quando fui realizar a inscrição.” Obstinada, a futura coronel foi aprovada no seletivo para a Polícia Militar de Caxias, mas queria alcançar sonhos bem maiores. “Depois de cinco anos no Batalhão de Caxias, surgiu um concurso para ser oficial. Eu queria ser oficial”, vaticinou. Perseverante e convicta, Augusta foi novamente aprovada. Dessa vez, como preparação para o cargo oficial, teve que passar quatro anos no Curso de Formação de Oficiais (CFO). Como a Academia de Polícia Militar do Maranhão foi criada somente em 1993, os oficiais da época eram formados em outros estados. No caso de nossa entrevistada, o Rio de Janeiro. “Cheguei sem saber nada da cidade. Imagine. Uma moça do interior do Maranhão de repente no Rio de Janeiro.” Entre aulas de legislação institucional e treinamentos físicos, o preparo era penoso. No entanto, o que mais abatia Augusta era o conservadorismo que reinava hermético em 1992. “Eles faziam de tudo fazer com que desistíssemos. Todos os exercícios físicos eram iguais, sendo homem ou mulher. Não foi fácil”, lembra ainda atônita. Ainda assim, desistir “nunca” foi uma opção: “Eu tinha uma questão moral de vencer aquilo. Eu não podia voltar para Caxias sem aquele curso. Era, para mim, uma meta. Eu tinha ido para isso. Não poderia voltar para meu estado sem o êxito.” Dos 93 alunos que iniciaram o curso, apenas 78 tenazes lograram a formação e puderam retornar a suas origens certificados oficiais aspirantes da Polícia Militar. “De lá para cá foi muita dedicação e trabalho. Passei por todas as funções da corporação. Foi muito aprendizado e conhecimento.” Augusta mudou para a capital e passou por todas as unidades da cidade: “Batalhão de Choque, Esquadrão de Polícia Montada.” Teve ainda funções na Diretoria de Finanças e foi Secretária Adjunta do Gabinete Militar. Há dois anos é Subcomandante do policiamento de área. Refiz a pergunta que havia feito a tenente-coronel: se em algum momento sentiu por parte dos homens da corporação algum soslaio de desdém em razão de seu gênero. Agora, esperando uma resposta mais didática. “Não. Pelo contrário. Houve uma força tarefa, um grande apoio de todos os colegas para que eu fosse empossada”, sublinhou lacônica.

Antes de Maria Augusta, só uma mulher havia chegado ao posto de coronel: Inalda Pereira da Silva foi uma das primeiras policiais a compor o quadro feminino da PMMA na década de 80, através de concurso público, e foi alçada ao cargo de coronel há 12 anos. Contudo, não obstante o hiato entre uma e outra ter durado mais de uma década, a recém-coronel é positivista: “esse foi mais um passo na luta das mulheres. Não só eu fui empossada, mas comigo, também, várias outras mulheres do nosso estado. Foi uma forma do Estado nos valorizar.” Não é o que costumeiramente ocorre. No último concurso para Polícia Militar do Maranhão, das 2.000 vagas oferecidas, apenas 10% eram para mulheres. Já no último vestibular da Universidade Estadual do Maranhão, o curso mais concorrido foi o de Formação de Oficiais na categoria feminina – o mesmo que a Coronel Augusta formou-se no Rio de Janeiro. Foram 3.002 candidatas concorrendo a uma das 5 parcas vagas oferecidas – para os homens foram disponibilizadas 35. Números que expõem a vontade das mulheres em seguir a carreira militar, independentemente da ausência de reciprocidade do militarismo para com elas. E a indiferença não é por falta de necessidade. A pesquisa “O Perfil dos Estados e dos Municípios Brasileiros” de 2014, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou o Maranhão como o 3º estado com o menor número de policiais militares mulheres em relação ao total do efetivo. À época, dos 7.709 policiais, apenas 446 eram mulheres. Cifra que ainda persistente, levando-se em conta o aumento populacional e a diminuta incorporação de mulheres à instituição.

Embora a conta não feche e exista um aparente receio em falar sobre machismo na Polícia Militar, a nova coronel do Maranhão é pragmática: “Essa carreira não é fácil. Mas mulheres são fortes. Temos que acreditar. Assim como eu, elas também podem chegar lá.” É, coronel… Elas estão tentando.

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