SÃO LUÍS 404 ANOS

Profusão de sons que fazem São Luís

A cidade de São Luís é um celeiro cultural expresso em sua arquitetura, música, poesia, dança e todas as suas manifestações folclóricas

“É muito fácil gostar de São Luís. Tem uma cultura rica e impecável”. Depoimentos como esse são facilmente ouvidos dos turistas que visitam a cidade, principalmente nas épocas das grandes festas como carnaval e São João, quando grupos de blocos tradicionais e bumba-meu-boi são as principais atrações locais.
Manifestações como essas, originadas aqui no Maranhão, têm feições próprias e particularidades só vistas no estado. Embora exista pouca literatura formal acerca de datas exatas sobre como e quando surgiram essas manifestações. Sabe-se que ritmos como os já citados, bumba-meu-boi sotaque de matraca, blocos tradicionais, baralho (já extinto) e tribo de índio, tem suas origens aqui em São Luís. São representantes verdadeiros de uma cidade que completa neste dia 8 de setembro 404 anos.
Segundo informa o músico e professor Chico Pinheiro, “São Luís é um laboratório de ritmos, mas muitos vieram do interior. Há que se compreender que ritmo não é inerente à música, é algo da vida. Aquilo que regula os movimentos. Pela minha experiência e pelos conhecimentos, o que nós temos aqui, típico da ilha, e que ainda não houve nenhuma contestação, é o boi da ilha. Alguns dizem que nasceu em Icatu, até pela proximidade. Mas é conhecido como ritmo da Ilha, que consagrou Humberto (Maracanã), Chiador, Josemar, Chagas, Vavá, Mané Onça”, afirma Chico Pinheiro.
Somente na capital, pelo menos cem grupos de Bumba-meu-boi estão em atividade. Cada um deles com o seu sotaque, ritmo próprio, vestimentas, indumentárias, coreografias e instrumentos específicos escolhidos de acordo com a cadência da toada. Matraca (ou da Ilha), Zabumba (ou de Guimarães), Orquestra (ou do Munim), Baixada (ou de Pindaré) e Costa de Mão (ou sotaque de Cururupu) compõem os cinco sotaques do bumba-meu-boi do Maranhão.
Neste texto vamos nos ater ao sotaque de matraca ou da Ilha, criado em São Luís e que tem um ritmo bem acelerado, onde a toada ganha vida com a participação contagiante de numerosos matraqueiros. Esse ritmo tem como principal instrumento a matraca: dois pedaços de madeira que são batidos um no outro; e o pandeiro rústico, feito de couro de cabra, além dos tambores-onças e maracás.
Os pandeiros são compostos de uma circunferência de madeira fina, com altura mais ou menos de quatro dedos, cobertos com couro de boi ou de cabra. O tambor onça é um cilindro de estrutura de flandres ou de madeira, tendo uma das extremidades coberta de couro. Os maracás são feitos de flandres com cabo, contendo grãos de chumbo ou algo similar, tendo os mais variados tamanhos e tipos. No boi da Ilha vários ritmos diferentes são tocados juntos. A grande marcação é o tambor onça, instrumento de centro que tem esse nome porque imita o esturro da onça.
“O Boi da Ilha tem as suas peculiariadades, quanto ao ritmo, quanto a forma de tocar, quanto aos instrumentos musicais, que alguns são bem indigênas, como o maracá. Você vê que cada pandeirão toca de um ritmo diferente, isso se torna uma coisa bonita e peculiar, e a maneira de empunhar (pra cima dos ombros) na direção da cabeça, para ficar bem perto do ouvido, é diferente dos pandeirões do boi da Baixada, que é pra baixo”, explica Pinheiro.
O bumba-boi sotaque da Ilha é das brincadeiras mais democráticas. A matraca é a mais popular e que bastou cada um trazer o seu par de casas, pode participar da orquestra. “Quero enfatizar que o ritmo mais marcante é o boi da Ilha, até pela quantidade de gente que ele arregimenta, pelo tipo de atrativo que ele faz no meio da comunidade, e tem a cara das brincadeiras do Maranhão. Ele não sofreu nenhuma modificação em sua característica. É como sempre foi. As melodias têm uma escala própria, a gente sabe que é boi da Ilha, porque eles têm uma maneira típica de emitir o seu som e de cantar as toadas”, comenta Pinheiro.
Em Dinâmicas do Bumba Meu Boi Maranhense: Classificação em “Sotaques” e Participação do Público, Lady Selma Ferreira Alberna, explica que “Até os anos 1980 tocavam no boi de matraca apenas as pessoas que compunham o grupo, e que ensaiavam junto com o conjunto de brincantes. Atualmente as pessoas do público podem tocar matraca dentro do grupo de boi, como se dele fosse integrante. Por esta característica do boi de matraca, observamos o público incorporar-se ao cortejo do boi, de ônibus ou no seu próprio carro, seguindo o grupo pelo resto da noite de arraial em arraial”.
O maior exemplo disso é a chamada “Nação Maiobeira”, que acompanha o boi da Maioba por onde se apresenta. Esses fãs dos bois de matraca são também chamados de mutucas – numa analogia com as moscas que voam em volta do gado.
A cadência do Bloco Tradicional
A cidade de São Luís é um celeiro cultural expresso em sua arquitetura, música, poesia, dança e todas as suas manifestações folclóricas que se constituíram ao logo de sua história em verdadeiros patrimônios material e imaterial do povo maranhense. É nesse movimento dinâmico de construção e reconstruções de saberes da cultura popular que os Blocos Tradicionais vão configurando suas identidades em diálogo permanentes com as transformações ao longo do tempo.
Blocos Tradicionais do Grupo A na Passarela do Samba no Carnaval 2016 (Divulgação/Secom)
O Bloco de ritmo ou tradicional surgiu por volta de 1930. Os primeiros relatos são registrados pelos jornais da época que fazem referências aos blocos “Vira-Latas”, “Pif-Paf” e “Os Brotos”, em sua maioria formada por pessoas da elite. De acordo com o produtor cultural José Ribamar Moraes, certa vez, um grupo saiu pelas ruas brincando até que algumas pessoas sujaram suas roupas e um deles disse: “estamos parecendo uns vira-latas”. “Daí, resolveram organizar a primeira brincadeira deste gênero, que, embora criada por uma elite frequentadora de bailes em lugares reservados, passou a circular com o bloco pelas ruas do centro da cidade”.
“O bloco de ritmo é algo sui generis com referência ao samba de todo o Brasil. É um tipo de samba que não é tocado em nenhuma outra parte do mundo e surgiu naturalmente quando as pessoas começaram a tocar em tambores maiores só com a mão e as retintas. Os instrumentos são o contratempo – os grandes tambores de som grave -, o surdo, que é o tambor maior, centraliza o tempo, marca o centro do ritmo; e todos os outros batem depois que ele bate. Por isso que é um tempo e outro é contratempo. Já as retintas são pequenos tambores agudos tocados com duas baquetas”, conta Pinheiro.
Da Ilha
Outros ritmos como as Tribos de Índio e o extinto Baralho, são tidos como tipicamente da Ilha. Já o cacuriá, que muitos pensam ter sido criado em São Luís, faz parte das festas em homenagem ao Divino Espírito Santo e que tem em Dona Teté, já falecida, uma grande divulgadora do ritmo e da dança introduzindo instrumentos musicais às tradicionais caixas.
A Tribo de Índio (brincadeira carnavalesca) que utiliza tambores, agogô e retintas, surgiu influenciada pelo cinema americano, mas esse ritmo, segundo Pinheiro, embora não saiba que tenha criado, nasceu em São Luís.
O Baralho também é proveniente do período carnavalesco onde as pessoas costumavam sair fantasiadas de carta de baralho, ou com os símbolos do baralho desenhados nas roupas, tambores e no rosto. “Era uma brincadeira onde se utilizava pandeiros, acordeons, violões, e tambores também. Faziam um tipo de toque que tem na mina (tambor de mina), e só se via aqui em São Luís. Não tem registro de nada igual em outros locais. Geralmente eram homens vestidos de mulheres que se encontravam na Praia do Caju (região que vai da Maria Aragão até a Ponte José Sarney), era lá que se concentravam. E se chamava assim porque os barcos traziam caju na região”, conta Pinheiro.
Ritmo de gabinete
Chico Pinheiro ainda cita os ritmos resultados da fusão de outros: o chamado ritmo de gabinete. Um deles é o bloco Afro Akomabu que começou tocando afoxé. “Desse afoxé, alguns instrumentos e alguns músicos já também influenciados pelo toque de mina, começaram a pegar a cabaça que passou a ser tocada com o toque da mina. Então com essa mistura foi se criando um outro tipo de batuque, um ritmo de afoxé com mina, aí o famoso Escrete batizou o ritmo de minaxé, estilo tipicamente de São Luís”, diz.
O grupo GDAM, por sua vez está fazendo experimentações com ritmos de origem africana e está criando ritmos novos: toque de mina com toque de boi de zabumba, por exemplo. “Eles estão experimentando para ver no que vai dar”, aposta Pinheiro.
Construção de uma identidade
Em artigo publicado no boletim da Comissão Maranhense de Folclore, o Doutor em Antropologia Social e pesquisador Sergio F. Ferretti abordou a identidade cultural maranhense na perspectiva da Antropologia e de como as festas fazem parte dessa construção.
“O maranhense do povo tem o costume de dançar, cantar e fazer teatro nas ruas. O maranhense gosta e sabe organizar festas bonitas e criativas. As religiões afro-maranhenses constituem uma das fontes de manutenção e preservação das festas do folclore e da cultura popular e contribuem indubitavelmente para a construção da identidade cultural maranhense. O bumba-meu-boi, o tambor de crioula, a festa do Divino e outras são também festas dos terreiros de mina. O Maranhão é uma terra onde o povo gosta de festas numa dimensão que remete ao barroco brasileiro e se relaciona evidentemente com nossas tradições latinas, ibéricas e africanas”.
O acadêmico e historiador Antônio Evaldo Almeida Barros em O Processo de Formação de “Identidade Maranhense” em meados do século XX, diz que as manifestações de cultura e religiosidade popular, mestiça e negra, especialmente bumba-meu-boi, tambor de mina e pajelança, são percebidas por membros da imprensa escrita, do clero e da intelectualidade como herança perniciosa dos antepassados índios e pretos do povo maranhense.
“Trata-se da perseverança de representações que têm como modelo uma dada Europa, sendo os ideais de civilização e progresso os nortes que guiavam a produção de textos e falas. Se, de um lado, aquelas manifestações são identificadas como sinais de decadência da região, de outro, identidade maranhense é repetida e insistentemente construída como refinada, erudita e branco-européia; o Maranhão é reatualizado como Atenas Brasileira e São Luís como única capital brasileira fundada por franceses”.
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