ARTIGO
A embriagues da poesia
Conheci Nauro Machado nos anos sessenta. Adolescente, apreciador da política, da prosa e da poesia, transitava pela rua Cândido Ribeiro, onde residia o poeta. Nas visitas a minha avó, moradora da mesma rua, ouvia os comentários elogiosos ao autor do livro, “Campo Sem Base” de 1958, logo conhecido e aplaudido pela crítica literária nacional. Da […]
Conheci Nauro Machado nos anos sessenta. Adolescente, apreciador da política, da prosa e da poesia, transitava pela rua Cândido Ribeiro, onde residia o poeta. Nas visitas a minha avó, moradora da mesma rua, ouvia os comentários elogiosos ao autor do livro, “Campo Sem Base” de 1958, logo conhecido e aplaudido pela crítica literária nacional. Da geração de Lago Burnet e Ferreira Gullar, era um emotivo contido, nunca se afastou da província e de São Luís, objeto de sua paixão de lírica desmedida.
Anos depois o encontrei no Largo do Carmo, nas rodas de conversas pela noite adentro, onde rolavam doidas estrelas de uma infinita paz, como traduziu em um dos seus poemas. Naquela universidade aprendia-se de tudo, politica, artes, literatura. Nauro era um dos professores ao lado de Bandeira Tribuzi, Erasmo Dias, José Chagas, Nascimento de Moraes. Tímido, introspectivo, sentia como Castro Alves, o borbulhar do gênio, mas comedido e discreto, nas conversas, impedia a explosão do potencial de talento que desembocava na sua prolífica obra.
Em 1996, publicou ensaios sobre as obras de Tribuzi, Chagas, Erasmo e Nascimento de Moraes, o pai, sob o título “As Esferas Lineares”. Neles, revela o domínio absoluto da crítica literária, exibe brilhantes rasgos filosóficos e sociológicos. Em 12 de outubro de 1997, publiquei texto sobre o livro, dizendo que o outro lado do bardo se manifestava em analises argutas e eruditas, demonstrando a convivência entre o poeta e o prosador inigualável.
Lembrei o episódio ocorrido nos anos oitenta, quando o sociólogo Roberto Lyra Filho me pediu o envio de livros de um poeta maranhense. Remeti-lhe os de Nauro. O destinatário encantou-se com a descoberta de que no Maranhão, havia um poeta capaz de resgatar a tradição grega anterior a Platão, de aliar a poesia com a filosofia.
Disse-lhe: Nauro com competência inexcedível conjuga as duas em sua atormentada e angustiada busca do ser e da existência. Acrescentei: a fome do infinito, presente nos filosofemas do existencialista Kierkegaard é imanente em sua poética, de incessante procura de comunhão com o absoluto.
Como aquele personagem de Bergman manteve permanente diálogo com a morte. Consciente da sua inevitabilidade perscrutava-lhe os mistérios, embriagava-se de paixão pela beleza e pela justiça. Grande demais para a província e o seu tempo, de sensibilidade à flor da pele, inovou na criação da poesia e da prosa.
A talentosa escritora Arlete Nogueira da Cruz, sua dedicada e leal companheira, era também a cúmplice no difícil exercício de enfrentar a existência, de permitir a ação do verbo e a garimpagem das palavras. Do amor dos dois, resultou Frederico Machado-Fred, cineasta. Aprendeu com os pais o amor ao cinema. Recentemente, na passagem dos 80 anos de Nauro, lançou o DVD “O Exercício do Caos”, baseado no livro homônimo, lançado em 1961.
Despedi-me de Nauro depois das dez da noite. Sabia-lhe pouco afeito a velórios, a rituais. Minha visita não era ao intelectual, mas ao homem, ao amigo. Arlete sabia dos nossos afetos recíprocos. Lembrei-lhe da nossa última conversa no restaurante Light & Meals, ocasião em que me entregaram o convite para o lançamento de “O Baldio Som de Deus”, e eu fiquei de lhes dar o endereço do poeta Paulo Bomfim, que em São Paulo me pedira a remessa de seus livros.
Infelizmente, no Velório, entreguei a Arlete o endereço e telefone de Paulo Bomfim. Andava com o papel no bolso para entregá-lo a Nauro. Ela a repassou para a sobrinha, a jornalista Ana Paula Nogueira, jovem, talentosa, minha colaboradora na Associação Maranhense de Advogados-AMAd, para as providências. Sobre o filme de Fred, considerando a complexidade da sua poesia, Nauro segredou-lhe: “agora, com a linguagem audiovisual, todos a entenderão”.
Disse a Aninha, dois poetas no Brasil viviam o ofício em tempo integral: Vinicius de Moraes e Nauro Machado. Ambos se embriagavam de amor pela poesia, pelo ser humano, pela cidade, pelo país. Naquele texto de 1997, “Os Cajuais de Nauro”, comparei-os a “Os Parreirais de Deus”, livro de 1975. Celebrei a tropical primavera maranhense e a nossa gostosa cachacinha com tira-gosto de caju. Impregnado de inquietações metafisicas, ele era um poeta identificado com a alma do seu povo.
Por fim, lembrei-me daquele seu poema sobre o assassinato de John Kennedy, em que indagou: “que pode o homem contra a solidão do homem? ” Nada meu poeta. É o ser e o nada.
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