ARTIGO
Eclipse do sol peronista?
Um dia de Sol claro, limpo, temperatura amena, uma voltinha no sindicato, uma charla política, a cafeteria. Isso é um dia peronista no imaginário argentino, plasmado na história de décadas do país platino. Ser peronista era, e ainda é, felicidade sem saber o porquê. Isso vale não apenas aos pobres, mas, particularmente, aos portenhos abastados […]
Um dia de Sol claro, limpo, temperatura amena, uma voltinha no sindicato, uma charla política, a cafeteria. Isso é um dia peronista no imaginário argentino, plasmado na história de décadas do país platino. Ser peronista era, e ainda é, felicidade sem saber o porquê. Isso vale não apenas aos pobres, mas, particularmente, aos portenhos abastados e gente boa das províncias ricas. Os mais velhos sabem disso. Foram em parte superados pelos piqueteiros da década passada. O peronismo ficou sem o glamour de antes, mas sempre foi peronismo.
O facho da luz foi escurecido pelos escândalos de corrupção no Partido Justicialista e nos governos da nação e das províncias, associados à decadência econômica do país e o desfazer de certo Estado social, que o peronismo pontificara historicamente. Esse é o lado da empáfia nacional das elites políticas e econômicas argentinas que cruzaram o peronismo político e social com a corrupção, prática relativamente aceita pela sociedade argentina.
Essa é uma das causas da declinação argentina que observamos nas últimas décadas. Os governos da nação e das províncias atacadas por graves crises fiscais. A idolatrada educação em baixa. A insegurança em cidades tão agradáveis, como eram Rosário e Córdoba anos antes. E foi assim que a Argentina foi saindo do mapa global.
Claro que isso remoeu os peronistas no poder. Mas os grêmios e a mobilização de massas por um líder salvador que cuida dos pobres seguem no coração da cantilena peronista. É uma alma argentina, cantada no tango e vivida a cada dia. No ideário platino, o dia feliz ainda será peronista. Cantaram suas canções, nesses dias, com força, na eleição presidencial. Cerca da metade dos argentinos que votaram na última eleição presidencial no país austral ficaram no campo do peronismo. E isso ocorre mesmo com todas as dificuldades de ser argentino nesses últimos anos.
O país está dividido. Enfrentará problemas mais graves dos que estamos passando no Brasil, tanto no ponto de vista econômico quanto na inserção internacional. O novo governo argentino terá problemas gravíssimos de retomada da economia normal como o mundo requer. Passou várias décadas fora do mercado global. Macri terá que enfrentar sindicados peronistas. E, mais difícil, um Congresso avesso às propostas iniciais do presidente eleito.
Portanto, ao avaliarmos os temas argentinos nesses dias, seria bom não colocar o carro na frente dos bois. Cuidado com o andor. Há analistas, em especial nos debates televisivos no Brasil, a trançar nova Argentina, encerrando o ciclo do peronismo. Inventam uma Argentina que não existe. Como nasce nova Argentina, com novas lideranças, adequadas ao mundo, com nova liderança com feição continental? Será a saída de Sábato? Ou crônica pícara de Borges?
O peronismo, com o eterno disfarce e capacidade de adaptação, sabe mais da Argentina e de seu povo. Saberá se adaptar ou reduzir o poder de Macri. A literatura política argentina está cheia dessa naturalização histórica da herança de Perón. Esse esquema seguirá, mesmo em degradação natural do tempo. Dizem que os populistas derrubaram a grande Argentina, Menem, porém, um liberal, mas também caudilho, respeitava seu amor pelo sol peronista.
Os fatos passados perseguem a relação dos que querem sair do círculo vicioso. Passado o regime militar, há mais de 30 anos, nenhum governo democrático, que não fosse peronista, terminou seu termo na Argentina. Alfonsín teve que entregar o governo antes. De la Rúa teve que fugir de helicóptero, voando por sobre o palácio do governo.
Os tempos passam e o peronismo é a vida. Lá cabem todos, com cores ideológicas azuis que são como as geleiras de Perito Moreno. Lá estão matizes para disfarçar o azul que liga o gelo e o sol peronista. Peronismo é esse viver plasmado na saudade dos caudilhos do século passado. É uma cultura platina. Não morre fácil.
* José Flávio Sombra Saraiva Ph.D pela Universidade de Birmingham, Inglaterra, professor titular da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador 1 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
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