Eusébio Ka’apor e seu primo viajavam de moto quando foram abordados por dois homens encapuzados e armados em uma encruzilhada. Os indígenas seguiam o caminho de casa, cruzando os povoados que cercam a Terra Indígena Alto Turiaçu, no Maranhão. “Tava chovendo muito, quase escuro”, relembra P (os nomes dos indígenas foram ocultados). Ao ouvir os gritos dos pistoleiros, ele resolveu acelerar. “Achei que não ia atirar, mas o cara atirou: tá!”, diz, simulando o som do disparo que atravessou o corpo de Eusébio, na garupa, e pegou de raspão nas costas de P.
A moto percorreu cerca de 80 metros, até que ele caiu. “Tá doendo”, foram algumas das últimas palavras de Eusébio. Ainda vivo, foi carregado até um povoado próximo. P foi então pedir socorro na aldeia Ximborendá. Com M, filho de Eusébio, usaram um caminhão para carregar o corpo, “espirrando sangue”, e correram para o hospital no município de Zé Doca. Alguns quilômetros antes de chegar à cidade, o Ka’apor faleceu.
P é a única testemunha da morte de Eusébio. O crime ocorreu no dia 26 de abril, na zona rural do município de Maranhãozinho, a três quilômetros da entrada da aldeia Ximborendá. Na manhã seguinte, na sede da cidade de Zé Doca, seu filho conta que foi abordado por um proprietário de serraria. “Ele disse que já sabia da morte e veio dizer que tinha outras pessoas pra morrer”, relata M. “E ainda reclamou que não consegue mais madeira lá”.
O madeireiro se referia à terra indígena dos Ka’apor, que sofre constantes invasões para o roubo de árvores. Cansados de esperar pela ajuda do Estado, desde 2013 os índios resolveram colocar a própria vida em risco para expulsar os madeireiros. Eusébio era uma das lideranças deste movimento.
Essas ações foram batizadas pelos indígenas como “missões”. Sempre dentro de sua terra, eles seguem a trilha dos invasores, tomam seus equipamentos, queimam seus veículos e expulsam os madeireiros, que têm que sair a pé. As trilhas por onde as árvores eram retiradas são fechadas. Os pátios, antes usados como base pelas serrarias, passam a ser ocupados por novas aldeias Ka’apor que levam o nome de Kaar Husak Ha – “áreas protegidas”.
Embora a investigação sobre o assassinato ainda esteja em andamento, são muitos os elementos que levam os indígenas a suspeitar dos madeireiros. Além de terem sido abordados por um proprietário de serraria na manhã seguinte ao crime, outros dois Ka’apor sofreram um atentado parecido: uma semana antes do assassinato, no dia 19, dois indígenas foram abordados por homens encapuzados e armados enquanto andavam de moto. Os pistoleiros tomaram o veículo, espancaram um dos indígenas e ordenaram que corressem para a mata. A poucos quilômetros do local, os agressores dispararam três tiros – um deles, no tanque da moto, que foi deixada na estrada.
Ex-cacique de Ximborendá, a maior das dezoito aldeias na terra Alto Turiaçu, Eusébio perdera o posto quando os Ka’apor substituíram o cacicado por conselhos gestores. Mas ainda era uma liderança importante. Sua morte assustou os dois mil indígenas que vivem nos 530 mil hectares do território indígena – uma das áreas mais conservadas do Maranhão.
A sobrevivência dos Ka’apor está diretamente relacionada à floresta. “Nós não dependemos da cidade, nós dependemos da mata. Por isso o nome é Ka’apor: ‘nós somos da mata’. E a mata também depende da gente”, diz J, outro indígena que falou sob anonimato. Ainda triste pela morte de Eusébio, ele aponta uma castanheira e explica por que as missões não podem parar: “esta árvore já estava aqui antes de eu nascer e antes do meu pai nascer. Por isso que lutamos. Nós podemos morrer, mas nossos filhos sempre vão ter a floresta”.
Quem matou Eusébio?
A investigação foi prejudicada pelo fato de a Polícia só ter chegado ao local do crime dias depois, quando a Secretaria de Segurança Pública do estado encarregou uma equipe para investigar o caso. O delegado José Henrique Mesquita trabalha com duas hipóteses: “A primeira é de que alguém está cometendo assaltos na região, e não tem nenhum envolvimento do conflito com os madeireiros. A segunda é de que a morte aconteceu a mando dos madeireiros para amedrontar os indígenas”.
A primeira linha da investigação, de latrocínio, é a mais difundida pela imprensa local. O histórico de conflitos na região, contudo, corrobora a segunda hipótese. “Esse tipo de ameaça já vinha sendo feita, e o Eusébio era uma das lideranças ameaçadas. É estranho que alguém tenha abordado justamente a motocicleta de uma liderança como ele”, diz o advogado Luiz Antônio Pedrosa, presidente da comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MA).
“A gente entende que, a princípio, é um delito relacionado com a situação de conflito local com os madeireiros”, diz o procurador Galtiênio Paulino, do Ministério Público Federal do Maranhão. Ele solicitou que a Polícia Federal investigue o caso, mas a PF respondeu que não deve entrar no caso enquanto as suspeitas de latrocínio não forem descartadas pela Polícia Civil.
Apesar de não ter ajuda federal, a investigação tem apoio dos próprios indígenas. Primeiros ao chegar ao local do crime, eles acharam um projétil calibre 38 revestido com uma capa de cobre. Pouco comum na região, é similar a outra bala disparada contra os indígenas na semana anterior ao assassinato, dia 19 de abril. Segundo o delegado da Polícia Civil, a coincidência entre os projéteis fortalece a hipótese do assassinato pelos madeireiros.