ENTREVISTA//

“É a maior crise da história da República”, diz Gil Castello Branco

Em entrevista, fundador da ONG Contas Abertas classifica crise atual como “muito grave”

Economista

Desde meados da década de 1980, não importa o governo, no seu encalce esteve Gil Castello Branco. Com ou sem estrutura oficial, o economista se especializou em expor benesses e desmandos na gestão do Orçamento. A habilidade já rendeu o apelido de Sherlock, em referência ao famoso detetive britânico. Foi responsável por diversas passagens na administração pública e em gabinetes parlamentares. Tudo isso até 2005. Desde então, o “detetive” da Esplanada encontrou abrigo na ONG Contas Abertas, fundada por ele mesmo.

Composta por quatro pessoas, a pequena organização foi a responsável pela denúncia inicial ao Tribunal de Contas da União sobre as pedaladas fiscais de Dilma Rousseff. Ironicamente, a primeira entidade a observar com rigor o que eram as maquiagens contábeis do governo Dilma acabou quase tragada pela crise econômica que as pedaladas agravaram. Faz um mês, a Contas Abertas teve de entregar a sala em que se situava. “Não consigo falar sobre isso sem me emocionar”, confidenciou ao Correio, com os olhos marejados. Os integrantes do Contas Abertas agora executam seus ofícios de casa: o trabalho resiste.
Gil fala ainda sobre os erros da equipe econômica, a gravidade da crise que se apresenta ao país, as dificuldades de tocar a ONG em meio à crise econômica e expõe, como sempre, as veias da corrupção no país. Contra o mal, ele vaticina, só a sociedade civil é capaz. “Somos como uma manada de búfalos trancafiada num cercado de ripa de madeira. Se nos movimentarmos, essa situação muda.”
Quão grave é o quadro econômico?
Muito grave. É, talvez, a maior crise da história da República. Esse entrelaçamento de crise econômica e política, mais a indefinição do que acontecerá no campo jurídico, nas contas da presidente e na Lava-Jato, com suas consequências, cria uma indefinição. Para quem imaginava que a solução viria pelos investimentos externos, o rebaixamento é mais uma ducha de água fria. Pelo menos uma boa parte do dinheiro não vem mais. Fico impressionado em como os investidores internacionais se preocupam e conhecem a economia brasileira muito mais do que muito economista brasileiro. É espantoso imaginar que grupos de investimentos vêm a Brasília, vários procuraram o Contas Abertas e outros especialistas não oficiais nos últimos tempos, para avaliar o que realmente estava ocorrendo, na tentativa de evitar o risco de ficar apenas com uma avaliação oficial chapa-branca.
Havia já essa desconfiança internacional com as contas brasileiras?
No ano passado, o Contas Abertas foi a um evento oficial do Banco Mundial; tivemos direito a fazer uma pergunta a Christine Lagarde e já perguntamos como ela via a situação de países, como o Brasil, que estão maquiando suas contas para obter melhores resultados fiscais. Ela ficou surpresa, não citou diretamente o Brasil, nem o excluiu, mas disse que a situação era muito grave e que alguns países já haviam tido a situação discutida no âmbito do G20. Um ano depois, a pergunta se mostrou extremamente pertinente.
A Contas Abertas foi a primeira a apontar as pedaladas fiscais, não?
Nós nos orgulhamos disso. A contabilidade criativa vinha sendo comentada há muitos anos, as dobradinhas com as estatais. Mas chamou a nossa atenção a ocorrência sistemática das pedaladas. Fomos reconhecidos por isso, inclusive pelo procurador do Ministério Público no Tribunal de Contas da União Júlio Marcelo, que foi quem levou à frente a questão das pedaladas na Corte. Enviamos ofício a ele, mostrando que estávamos observando situações absurdas, como o governo emitir ordens bancárias nos últimos dias do ano para serem sacadas no ano seguinte, para influenciar no resultado fiscal. Chegou ao absurdo de os pagamentos de janeiro ficarem maiores do que os de dezembro, para não impactar no resultado primário.
O argumento do governo é de que não era novo…
As pedaladas existem há muitos anos; nós mesmos, em nossas casas, empurramos uma dívida. O próprio governo, na década de 1980, desde a época do então presidente José Sarney, fez isso ao modificar a data de pagamento para os servidores do fim do mês para o início do mês seguinte. Isso foi uma pedalada, no bom português. O Tribunal de Contas da União já vinha fazendo sutis sugestões de que essas transferências impactavam o resultado. Só que era em escala muito menor do que o observado hoje.
Qual é a diferença entre as pedaladas de Dilma e as dos outros presidentes?
Sinceramente, a proporção e o fato disso ter acontecido no ano da campanha. Passa a ideia de que a intenção não era apenas maquiar as contas, mas criar um fato eleitoral. É um crime contra a responsabilidade fiscal e contra a Lei Eleitoral. Se a legislação não prevê isso, deveria. Chegamos a um ponto em que diversos governadores colocaram em curso a mesma prática. Houve a nítida intenção de maquiar um resultado até o limite. A presidente alega que só teve essa percepção em novembro. É a forma que ela e seu marqueteiro encontraram para mudar a acusação de mentirosa para a de desatenta. Não faz sentido você imaginar que isso não era do conhecimento público antes de novembro.
Por que?
Houve fatos graves, como os bancos pagando com recursos próprios programas do governo, sem que o tesouro repassasse o dinheiro. É tudo o que você queria impedir com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, na década de 1990, quando os governadores, não satisfeitos em quebrarem os estados, quebraram também os bancos estaduais. O procurador Júlio Marcelo avançou mais na denúncia das pedaladas quando pegou os relatórios bimestrais das contas do governo e confrontou com os decretos de aumento de despesas. É grave, porque quem assinava isso era a presidente. Como ela vai explicar que, em pleno ano eleitoral, aumentava as despesas tendo consciência da situação econômica pelos relatórios do Planejamento? Não tem como. Isso criou uma onda e agora, como estão evitando as pedaladas, as despesas passadas se acumularam com os restos excessivos a pagar. O governo não consegue zerar a conta.
Se é crime eleitoral, isso reforça a tese do impeachment?
O Tribunal de Contas deve fazer um julgamento absolutamente técnico. Por isso, não tem como deixar de reprovar as contas. Ele não pode fazer recomendações, porque já fez isso aos quilos, inclusive nesse sentido. Eles estão em uma situação difícil. Já aprovaram com ressalvas, já fizeram considerações e nada disso foi considerado. Pelo contrário, os problemas se agravaram.
O governo defende que as pedaladas eram aceitas anteriormente…
Não concordo. A Lei de Responsabilidade Fiscal já deixava clara a intenção de que você transferisse para a gestão seguinte um orçamento equilibrado. Pode estar escrito de uma forma mais ou menos grave, dependendo do artigo, mas a intenção era essa. E isso não ocorreu na economia. O paciente já vinha doente há tempos. Só que a doença era mascarada por um cenário externo e interno favorável. Tendo receita, ninguém se preocupou com as despesas. Quando veio a recessão, os remédios preventivos não haviam sido adotados e não o foram durante 2014 ,porque era um ano eleitoral. Só que o tratamento agora terá sérios efeitos colaterais. Pelo menos mudaram um dos médicos, mas a equipe médica ainda mantém nomes antigos. Aliás, esse é um problema. Quando Joaquim Levy aceitou trabalhar com Nelson Barbosa, as divergências já estavam explicitadas. Barbosa jamais admitiria o fracasso da nova matriz econômica que ajudou a criar. Não faria o mea-culpa e diria que errou. O confronto estava marcado. No fundo, Levy era uma âncora necessária para o governo. Ninguém, no PT ou na cúpula do governo, tinha simpatia efetiva pelo Levy, por toda a história dele como economista. Mas ele era essencial para ter a credibilidade nas contas.
A política errática do governo enfraquece Levy até que ponto?
Diria que ele recuperou forças. Dentro dessa situação, está mais forte, porque mostrou que tinha razão. Mas o governo precisa dar uma resposta imediata. Precisa dizer claramente o que pretende fazer.
Há saída sem aumento de impostos?
Para mim, não há. Quando falamos num rombo de R$ 30 bilhões, não temos mais como imaginar que os cortes em despesas periféricas resolverão isso. Hoje, se somássemos corte com vigilância ostensiva, festas, publicidade, locação de imóveis e outros gastos discricionários, eles representariam R$ 19 bilhões. O Planalto diz que cortará 40%, mas isso não significa nem um terço do que precisa ser cortado. Por aí, não vai.
O governo acha que não há saída sem reformar a previdência…
Ao analisar os gastos da União, você vê que o pessoal não é o vilão. O que saltou muito foram as transferências constitucionais, Bolsa Família, aposentadorias, pensões, benefícios. Tudo isso reajustado pelo mínimo, que cresceu acima da inflação. Isso gera uma distorção que tende a se agravar com a questão da nossa pirâmide etária estar se invertendo, temos um fim do bônus previdenciário. Então, temos um problema que não é apenas para o ano, mas para as próximas décadas. Um imposto temporário vai atenuar a situação no momento. Mas, sem reestruturar as despesas, o problema ressurge. Temos 130 mil novos servidores na máquina pública. Só a Presidência tem 18 mil funcionários, se somadas secretarias, agências e outras estruturas que foram sendo penduradas no Planalto ao longo do tempo. Só de cargos comissionados e DAS, são 7 mil. A tribo cresceu, cresceu o número de caciques. Há um inchaço aí.
Você tem comparação com outros países?
Na quantidade de pessoal, não, mas a gente escutar da presidente na semana passada, naqueles movimentos erráticos, que não tinha mais onde cortar, numa estrutura em que você tem 39 órgãos com status de ministério, 100 mil cargos, funções de confiança e gratificações, uma Presidência com 18 mil pessoas. Uma estrutura que incorporou 130 mil pessoas de 2002 para cá, 4 mil DAS e 30 mil cargos e funções de confiança. Meu Deus! Não é só imaginar que vai cortar 10 ministérios. É preciso repensar o Estado. O único verbo que a Esplanada aprendeu a conjugar é cortar. O ângulo é só o fiscal. Se você tiver uma receita superior à despesa, tudo bem. De repente, você se depara com uma recessão, a receita murcha e a despesa está grande demais. O que fazer? O governo demonstra uma falta absoluta de planejamento.
Os governos se assemelham?
Ao longo da minha vida, acompanhando gastos, perdi aquela ilusão de separações de esquerda, direita, o bem e o mal. Hoje em dia, prevalece o interesse político-partidário pessoal sobre interesses maiores. Infelizmente. Com todo esse linguajar entre Executivo e Legislativo, emendas e cargos. Nem sei como é que eles passariam a se relacionar se um dia acabasse essa linguagem de cargos e emendas parlamentares e favores. Tudo converge aí. Cada um enxerga a reforma política olhando seu umbigo. A situação é dramática por isso.
Há o que cortar?
Veja: 74% dos DAS são cargos de funcionários concursados. Acaba com o ministério e aquilo vai virar uma secretaria em algum lugar. Ganhou o quê? A diferença do DAS 6 para o 5: menos pessoas viajando nos jatinhos da FAB, menos pessoas nas salas VIP, menos assessores e carregadores de mala, menos empáfia. Tudo isso vai melhorar. E também a gestão. É impossível imaginar que a presidente consiga despachar com os 39 ministros. Reunião ministerial passou a ser quase um comício.
No MInistério do Esporte, teve a chance de descobrir como a máquina funciona?
Estive várias vezes em cargos públicos e estou terminantemente proibido pela minha mulher de assumir outro. Ela disse que nunca mais. Ela acha que não tenho temperamento para isso, porque onde chego, cria-se uma situação. Começou no governo Sarney, com a questão dos imóveis. O ministro João Batista Abreu (do Planejamento) tinha sido meu professor de microeconomia na PUC-RJ. Ele me chamou para trabalhar com os imóveis funcionais. Disse: “Isso é um balaio de gatos. Entra de sola”. Fiz 79 despejos. Até que chegou no Cafeteira(governador do Maranhão à época). A mulher do governador tinha apartamento funcional em Brasília. Ela não podia sair.
Quando tempo você ficou lá?
Sempre passava quatro meses. Depois, início do governo Collor, foram alguns meses. Saí até processado, devido a um desentendimento. No governo Collor, me chamaram porque eu tinha estado no caso Cafeteira e saí brigado. Pensaram: o Gil é emblemático. E me chamaram para vender os imóveis. Lá fui eu. Naquela época, se você dissesse para o servidor, ‘olha, vou dar o imóvel para você’, ele dizia assim: ‘Mas não vai pintar antes, não? Você já viu o estado em que está?’. A minha posição era defender o Estado. Um cidadão me acusou de dificultar a venda para atender a grupos imobiliários da cidade. Ele foi ao ministério e aí houve o desentendimento.
Aí, você saiu?
Sim. Acabei indo para o patrimônio da União e fiquei apenas quatro meses, porque não tive coragem de assinar nenhuma daquelas concessões de áreas, o aforamento. Você cede uma área da União para uma pessoa. Às vezes chega o cara com uma certidão de mil novecentos e antigamente, que comprou de um índio aquele imóvel. Hoje, está mais difícil, mas os cartórios antigamente produziam documentos de centenas de anos atrás. Então, eu digo o seguinte: para trabalhar na Esplanada precisa ter estômago…
E ter cuidado com o que se assina…
Tudo o que você assina é um risco. Tinha um hábito: colocar uma caixa de papelão do meu lado. Tudo o que assinava, que achava que era mais delicado, pedia para a secretária tirar uma cópia e colocava na caixa.
Você tem isso guardado até hoje?
Alguns desses, sim. Dentro da minha garagem. Aconselho isso para qualquer servidor. Porque, daí, quando você vai embora, você não sabe o que vai acontecer. Está fora e não tem mais como se defender. Então, é uma forma de se proteger.
Com Agnelo você ficou quanto tempo?
Mais ou menos seis meses. Prefiro apagar o Agnelo da minha vida. Era secretário executivo num ministério que era ninho do PCdoB. E era ali uma pessoa completamente fora do contexto. Sequer conseguia marcar uma reunião com os secretários. As pessoas eram do PCdoB e achavam que não deveria estar ali. Então, a saída foi essa: ou Agnelo tomava uma atitude com aquelas pessoas, ou eu estava fora. Como vi que ele não tomou atitude nenhuma, resolvi sair.
Você se achou numa ONG depois de passar por todos esses cargos?
A ONG completa 10 anos em 9 de dezembro, Dia Internacional de Combate à Corrupção. Somos quatro pessoas. De tudo o que passei, foi o que me deu mais satisfação. É algo em que você se sente útil e não está ali tendo que receber parlamentar para construir uma quadrinha em determinado lugar, ou conceder um imóvel funcional para alguém, ou assinar aforamento de terra para um político qualquer. Cheguei à conclusão, e a minha família idem, de que não tenho espírito para o setor público. Também não tenho para ser político. Nunca fui filiado a qualquer partido. A minha intenção é mostrar que a sociedade pode fazer muito mais do que imagina.
Vocês entregaram a sala. Por quê?
Nosso estatuto diz que é terminantemente proibido receber recursos públicos. Então, com a nossa expertise de entrar no Orçamento e buscar algo que interesse a distintos segmentos, a gente produzia levantamentos. Fizemos para o Banco Mundial, o Unicef. Esses levantamentos, nós cobramos, claro. Recebemos o prêmio Esso de melhor contribuição à imprensa, da ONU por contribuição ao combate à corrupção, ganhamos um prêmio da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). Mas não temos dinheiro para manter a organização no seu dia a dia, a não ser custear as quatro pessoas. O que tem remuneração hoje se limita a três contratos: Confederação Nacional dos Municípios, Fiesp e CNI. Temos essa ideia de que a sociedade pode mais. Nunca tivemos tanto prestígio, mas a ONG nunca teve tão pouco dinheiro, embora eu não troque um pelo outro.
Ficou no governo até quando?
Segui servidor dos Correios, mas sempre requisitado por outros órgãos. É mais fácil dizer por qual ministério desses não passei. Quando me aposentei, montamos a ONG.
Você e o Augusto Carvalho?
Fui o primeiro a assinar a sua constituição. Augusto Carvalho foi o segundo. Quando ele foi para a Secretaria de Saúde, fui contra. Conhecia o Augusto. Ele não conseguia administrar o gabinete, imagine a secretaria. Então, fizemos uma ata registrada em cartório em que ele se desligava de todas as funções. Saiu do Contas Abertas. E foi o grande salto da gente. Tirou a ideia de uma associação política, porque, embora eu fosse o primeiro, ele era o mais conhecido. Na verdade, servimos (Gil e Carlos Brenner) de escada para muitos políticos. Augusto, Agnelo, todos saíram com fama de fiscalizador. Trabalhamos também com Denise Frossard, Roberto Freire, Eduardo Paes.
Eduardo Paes?
Sim, quando ele foi deputado, no governo Lula. À época no PSDB, ele ligou para FHC e perguntou : ‘Presidente, o senhor se lembra daquele pessoal que entrava no Siafi e fazia uns levantamentos?’ FHC respondeu: “Claro, esse pessoal infernizou a minha vida.” Quando ele era presidente, pegamos compras de pão de mel, fundo social de emergência comprando goiabada. Então, quando o Paes perguntou o que ele achava de nos contratar, FHC respondeu “Ótimo!”. Moral da história: transparência é muito boa no governo do adversário.
Hoje é tudo aberto?
A transparência foi muito ampliada com o boom da informática e da internet. Hoje, abriu. Antes a gente fazia com exclusividade. Éramos cinco pessoas, no Congresso.
E o DF? O que Rollemberg pode fazer em relação a esse rombo?
Acho extremamente importante preservarmos a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Você tem 19 estados que estão na zona de risco. Brasília entra nisso. O Rio Grande do Sul é o extremo. Além de ter comprometida uma parte expressiva da receita corrente líquida com pessoal, está extremamente endividado. Vimos o fim do governo Agnelo. Ninguém nos contou. Vivenciamos. Se não houvesse uma situação de penúria, ele teria pagado as contas. Não daria um tiro no próprio pé. Isso fez com que o Rodrigo recebesse uma situação dificílima.
Que problemas você vê na LRF?
A lei perdeu o efeito preventivo. Embora os tribunais de contas alertem os estados, isso não impede que acabem comprometendo os princípios da lei. A situação se torna grave porque as punições demoram muito. Uma situação do governo Maria de Lourdes Abadia, com o secretário de Fazenda, Valdivino Oliveira, em 2006, é um exemplo. Houve um questionamento se teriam infringido a LRF. O MP fez o que seria cabível: encaminhar ao TCE. O TCE não puniu, o MP insistiu no assunto e, no ano passado, Janot abriu uma investigação. Quase dez anos depois. Isso podia ser mais rápido. Se demorar a punir, a Justiça não é feita. Se (Agnelo) tiver culpa de ter deixado essa herança, e tudo leva a crer que tem, deve ser punido imediatamente.
A LRF não tem sido respeitada…
Tem sido rasgada todos os dias. É rasgada no governo federal, nos estados, nos municípios. E aquilo que era uma conquista da sociedade está se perdendo, justo agora, ao completar 15 anos. É preciso ampliar o debate. Veja o caso da Lei Complementar 131, aquela lei que obrigou União, governos estaduais e prefeituras a terem um portal para saber o que comprou, de quem comprou, por quanto, a quantidade. Mas não foi implementada por completo. O problema parece estar na impunidade. É lamentável que a lei não seja cumprida. Porque, como ela é uma emenda à LRF, a punição é clara: suspender as transferências voluntárias. Como imaginar que ainda tem gente que não cumpre a lei a essa altura do campeonato?
O que acha da Lei de Acesso à Informação?
É essencial para o controle social. Mas a transparência tem camadas. Tem pessoas que vão querer entrar no site do Portal da Transparência da CGU para ver quanto a Dilma Rousseff está ganhando. E isso está lá. Mas tem entidade, como o Cfemea, o Inesp, o Contas Abertas, que fazem avaliações mais profundas. Até me surpreendi favoravelmente dias desses. Hoje, a Contas Abertas tem uma senha do Siafi, do Tesouro Gerencial, que é o que há de mais moderno. E essa senha me foi concedida pelo (Joaquim) Levy. Foi a primeira vez que aconteceu isso nos 10 anos da Contas Abertas. Já tinha feito esse pedido várias vezes. E pedi a senha de novo. Aí, daqui a pouco chegou uma resposta por e-mail: “Favor comparecer à Secretaria de Fazenda Nacional…”. Pensei: “Será?”. Mas, dois dias depois, chegou lá no e-mail a autorização. Fomos entrando e vimos que ela tinha acesso total aos dados. “Caramba, eles deram mesmo”, pensei.
Será que não foi por engano?
(Risos) Não, o Levy fez isso. Mas há outros pontos. Todas as estatais estão envolvidas num escândalo. Digo que as estatais são a Disneylândia dos corruptos. Você tem muito dinheiro, muita ingerência política e pouquíssima transparência. Elas têm todos os requisitos para a corrupção prosperar. Você pega uma estatal e vê tudo que elas movimentam: R$ 1,3 trilhão por ano. Isso é praticamente o PIB da Argentina. O investimento, só da Petrobras, é muito maior do que o investimento da União. Muito dinheiro, ingerência política, pouca transparência. É o paraíso dos corruptos. Que tal, nessa altura do campeonato, ter acesso ao Sistema de Informação das Empresas Estatais (Siest)? A LDO me dá claramente esse direito, como entidade da sociedade civil devidamente autorizada. Mas já pedi ao Planejamento, e ele negou. Pedi aos Transportes, o Siac do Dnit. Todos negaram.
Isso não é desestimulante?
Tem uma história mais emblemática. Um amigo da CGU me mostrou um novo sistema. Sim, a Esplanada tem uma rede do bem, um exército Brancaleone. Esse cara me mostrou o sistema que tenta reduzir gastos com passagens e diárias. A CGU montou um sistema, o Observatório de Despesa Pública, que sabe quantas passagens determinado ministério comprou, o preço e a data da compra. Mostra qual foi o preço médio das passagens, com que antecedência foi comprada. Você pode fazer um campeonato: quem está comprando mais barato e quem está comprando com mais antecedência. Esse sistema elenca vários tipos de despesas, criando um constrangimento para quem comprou mal. Achei isso muito bom e pedi acesso. Levy vem falando isso corretamente: não é controlar os gastos dizendo “corta 10%, 20%”. É controlar melhorando a gestão.
E aí não ganhou a senha?
Pedi ao primeiro nível, negado. No segundo nível, negaram também. Agora, recorri ao terceiro nível, o do ministro. Devem negar também. Eles querem uma parceria com o controle social, mas não dão instrumentos.
É uma transparência limitada.
Qual deve ser o receio deles: que se faça uma matéria mostrando quem está comprando melhor. Mas qual é o mal disso? Isso tem de ser exposto. Se a CGU, que se arvora como a mãe da transparência, nega, o que esperar de uma prefeitura do interior de um estado do Norte. Em um país com dimensões intercontinentais, como o Brasil, os controles têm de se complementar. É o controle externo, interno, o controle social. É uma honra participar disso. É o prestígio sem dinheiro.
Qual é o caminho para o cidadão fiscalizar as contas dos governos?
Pelo Portal da Transparência, da CGU. Agora, para as entidades que realmente fiscalizam os gastos públicos com mais profundidade, aí, o melhor, disparado, é o Siga Brasil, do Senado. Primeiro, que o Portal da CGU só tem do Executivo, não tem do Legislativo ou do Judiciário. Em segundo lugar, o Portal da Transparência só tem uma despesa paga, você não tem aquela relação entre quanto está no orçamento e quanto foi pago.
Como é a relação com Brasília?
Meus filhos são daqui, a minha mulher também. Eu gosto da cidade, embora me incomode um pouco com esse clima excessivamente político. Mesmo trabalhando fora do governo há mais de 10 anos, tenho de tomar os meus cuidados. Você nunca vai me ver bebendo, não tem a menor chance. Tomo as minhas preocupações e isso excede os meus princípios morais. É uma questão de absoluta prudência. Isso me incomoda, mas não deixo de aproveitar a cidade, o lago é o meu paraíso. Tenho uma lancha. Vou para o lago todo o fim de semana, chova ou faça sol. Nem gasto muito combustível, saio dali do Iate, paro ao lado da UnB, num lugar tranquilo. Ligo o som, pego o jornal. Aquilo me dá a higiene mental para começar a segunda-feira de novo.
O senhor sofre perseguição?
Em Brasília tem a rede do bem, mas também tem a rede do mal.
Sim, tem a rede do mal, então você tem de navegar com cuidado. Não sou uma instituição, não sou um jornal, o processo vem em cima de mim, então tenho de tomar certos cuidados.
E qual é o caminho buscado pelo senhor?
Fortalecer a sociedade, mostrando que a sociedade civil pode muito mais do que ela própria imagina. Somos como uma manada de búfalos trancafiada num cercado de ripa de madeira. Se nos movimentarmos, essa situação muda.
E também há um desafio, uma mudança de mentalidade.
Você não muda uma cultura porque simplesmente assinou um papel. Oitenta por cento dos municípios não regulamentaram a Lei de Acesso, diversos estados. É muito difícil mudar a ideia do secreto, a ideia do burocrata de que sentar sobre a informação é poder. Você convencer o servidor, o burocrata, de que informação é um bem público e não um favor, é algo difícil. E tem também alguns tabus. Não sei se vocês se lembram, mas a Prefeitura de São Paulo foi a primeira a divulgar o salário dos servidores, na época do Kassab. E aquilo gerou um questionamento que foi bater no STF, teve até despacho do Gilmar Mendes. Aí escrevi um artigo sobre isso, defendendo a abertura dos salários, o acesso à informação. Dentro do princípio de que o patrão do servidor é o cidadão. Era ali por 2009. Lembro que a minha mulher leu meu artigo e disse: “Acho que agora você está indo longe demais”.
Qual cargo público mais agradou?
Em todos os cargos tive problemas. Minha duração sempre foi efêmera porque logo, com alguns meses, tinha que enfrentar graves problemas. O Cafeteira era um, a venda dos imóveis funcionais, outro. O Patrimônio da União era uma pressão brutal, aí aumentei os preços dos aluguéis e o mundo desabou em cima de mim.
Como sobreviver no serviço público?
Tem de ser tolerante. Senão, as pessoas o acusam de não ter jogo de cintura. Dizem que não tenho habilidade política e que, em certas circunstâncias, até deixo o ministro mal. Por exemplo, o João Batista Abreu. Quando aconteceu o negócio do Cafeteira, ele nem me recebeu. O chefe de gabinete disse: “Gil, você vai deixar o ministro mal”. E disse: “Eu? Ele me mandou entrar de sola, fiz 79 despachos, e só o Cafeteira não pode sair? Com que cara volto? Então, você tem de arrumar outro cara. Mudou a orientação, agora não é mais entrar de sola”. Aí o camarada corta a relação. Sarney tinha ligado para o João Batista Abreu para resolver o problema, não resolvo e decido sair. A Esplanada é uma máquina de moer pessoas do bem. Se você se prender a princípios éticos, vai enfrentar dificuldades. Isso acontece na Esplanada e no Legislativo. É um dos motivos pelos quais jamais seria candidato. Prefiro fugir desses ambientes. Tenho a minha independência, me dou com quem quero. Na época do FHC, os partidos de esquerda achavam ótimo o que fazia. Hoje é o contrário. Acho engraçado, mas digo que continuo fazendo a mesma coisa.
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