A Lei da Biodiversidade, apesar de tratar especificamente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado a esse patrimônio, está servindo de instrumento de luta contra a discriminação para alguns povos e comunidades tradicionais. É o caso dos ciganos e dos povos de terreiro e de matriz africana.
A representante da Associação Nacional Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (Acbantu) de Manaus, Katy Mayara Marques, disse que os povos de terreiro sempre sofreram discriminação, que tem se agravado nos últimos tempos, inclusive com violência física. “Se eu for retirar uma planta de um terreno vazio, identificada como povo de terreiro, e um vizinho ver, ele vai tentar me impedir. Já aconteceu comigo, uma pessoa me xingou, colocou um cachorro para correr atrás de mim só porque eu era povo de terreiro. Se eu fosse sem identificação [sem as roupas tradicionais], não teria problema. Em Manaus, recentemente, um pai de santo foi assassinado só porque era povo de terreiro”, contou.
Segundo Katy, os povos de terreiro têm um conhecimento tradicional associado às ervas, o que prevê a sua proteção na Lei da Biodiversidade. Ela disse que espera a valorização cultural de forma geral, por meio dessa e de outras legislações. “Com elas [as ervas], fazemos banho, processos de purificação e medicinais, nós temos a nossa forma de utilizar cada erva. Mas batemos na tecla da discriminação porque é isso que nos ronda. Os índios, por exemplo, têm todo um apoio e nós, povo de terreiro, ainda não estamos nesse nível. Esperamos que esses espaços sejam um meio de defesa, porque estamos sendo agredidos de todas as formas, agora pior, fisicamente”.
Para o gerente de projetos do Departamento de Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente, Henry Novion, como a lei diz que o conhecimento tradicional fica protegido e é um patrimônio imaterial do povo brasileiro, ela abre a possibilidade para uma política de valorização da cultura dos povos em geral. “O caminho de entrada é o conhecimento tradicional associado, mas legitima outras ações que podem ter outras consequências. Pode haver novas legislações que tratem desse aspecto cultural, é um processo que vai se somando”, disse.
Katy e diversos representantes de povos e comunidades tradicionais e povos indígenas estiveram reunidos em uma oficina de capacitação para a regulamentação da Lei da Biodiversidade, sancionada em maio deste ano. O evento, que terminou na semana passada em Rio Branco, no Acre, é o primeiro de seis encontros regionais e um nacional que estão sendo organizados por um grupo de trabalho da Comissão Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais e conduzidos pelo Departamento de Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente.
Segundo Maura Piemonte, cigana do segmento dos kalons, a lei vai trazer muitos benefícios para vários povos e comunidades tradicionais. Ela disse, no entanto, que não vê o povo cigano representado na nova legislação. Vamos aproveitar todas as brechas para que possamos ter um pouco de visibilidade, mas garanto que é bem difícil”.
Maura lembra que são elementos da cultura do povo cigano as benzedeiras, as raizeiras, o modo de vestir, as músicas e danças, a produção de tachos de cobre. Para ela, a legislação deveria proteger esses aspectos. “É um desafio porque a última coisa que nos sobrou, a nossa identidade, está sendo levada, a nossa cultura está pedindo socorro, ela pode se extinguir”.
De acordo com o diretor do Departamento de Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente, Rafael Marques, quando a lei reconhece alguém como sujeito de direito, dá um mínimo de legitimidade, não só para que o sujeito exerça seus direitos, mas para defender a sua cultura. “Se o Estado ou o Congresso não faz nenhuma referência, você começa a virar um ser invisível. Eles estão deixando de ser invisíveis e isso é um primeiro passo”.
Segundo Marques, o governo tinha uma expectativa mais técnica em relação à Lei da Biodiversidade, relacionada ao patrimônio genético, um aspecto físico, e esses outros impactos sociais estão surpreendendo. “Os ciganos não foram citados [diretamente], nem os quilombolas, ribeirinhos, as quebradeiras de coco e todos eles estão na condição de povos e comunidades tradicionais. Existe ainda essa questão da identificação, de querer ver seu nome lá, mas a lei não contemplou isso. O que não quer dizer que os direitos não estão garantidos. Todos os conhecimentos tradicionais do povo cigano serão protegidos na mesma medida” disse Rafael. Na sua opinião, todos eles têm expectativas muito amplas do ponto de vista social. “Eles querem muito mais coisas do que a lei trata”, completou.
O senador Jorge Viana (PT-AC), relator do projeto no Senado, esteve presente no encerramento da oficina e disse que a discussão com a comunidade é a melhor ferramenta para que a regulamentação possa fazer um ajuste mais fino na própria lei. “Agora, temos uma lei que é referência para o mundo,. Ela tem defeitos, tem problemas, as comunidades, com razão, querem mais aperfeiçoamento. Mas acho que estamos no caminho certo”.
Segundo Viana, é uma lei complexa, que lida com interesses poderosos, como os da indústria farmacêutica, de cosméticos, química fina e de alimentos. “Mas o melhor de tudo é que estamos apontando um caminho para a biodiversidade. Todo esse patrimônio é solução para o país, pode estar na base de uma atividade industrial sustentável, da inclusão social de setores e de movimentos tradicionais que ainda se sintam excluídos. A lei é esse instrumento”.