O AMOR

O Mendigo e o Cachorro

Amar depende de quem se ama. Pode-se amar a pessoa amada. E não ser amado pela pessoa que se ama. Mas, ainda assim, ela é amada. Alguns, no ato de amar, são fetichistas: amam os pés da pessoa amada, ou amam o nariz um tanto afilado, ou a suavidade da voz, ou ainda inteligência e […]

Amar depende de quem se ama. Pode-se amar a pessoa amada. E não ser amado pela pessoa que se ama. Mas, ainda assim, ela é amada. Alguns, no ato de amar, são fetichistas: amam os pés da pessoa amada, ou amam o nariz um tanto afilado, ou a suavidade da voz, ou ainda inteligência e mesmo até a burrice. A não ser os sádicos, ninguém ama a grossura, a indelicadeza, o mau humor, a falta de afetividade, o desrespeito. Muito menos o silêncio, como desvalia da pouca atenção dada à pessoa amada. Ah!, ia esquecendo, há os que amam a prazo e justificam as uniões efêmeras a prazo fixo ou móvel. É o amor momentâneo, de muitos risos, de cama e mesa, mas que acaba quando o apetite se esgota. Casa-se, sob cantos, sonhos e fantasias, ou mesmo não se casa, e convive-se por um tempo determinado, até findar a contagem do prazo. Ao lado dessa efemeridade passional, há os dotados de grande volúpia amorosa e têm, a um só tempo, vários amores. Conseguem, assim, estabelecer uma espécie de crediário de paixões diversas, e, sem muita dificuldade, encontram sequiosos consumidores ou consumidoras para seus apetites amorosos. Amam como caixeiro-viajante, ora aqui e mais acolá. E o melhor: são amados.
O ser humano – e isso é da sua essencialidade – precisa amar e ser amado, ainda que com alguma ilusão de que vive o grande amor de sua vida, ou da vida do outro. O poeta Paul Valéry dizia que “um homem sozinho está sempre em má companhia”. Mas, já se disse que é melhor estar só do que mal-acompanhado. Também se tem afirmado, como marca da individualidade: cada um por si e Deus por todos. Ou: nenhum homem é uma ilha, numa concepção mais socializante. São verdades, ou supostas verdades, que nos vêm sendo reiteradas por toda uma vida. Ora reafirmando a solidão, como essência do viver, ora dando ênfase à necessidade de estar com o outro, como complemento necessário desse viver.
Mesmo assim, considerando essas pressuposições, que são tão antigas quanto o próprio ser humano, dizem, em contraponto, que o cachorro é o melhor amigo do homem. Ou, num sentido mais direto, explica-se: o homem não tem com o outro uma relação de amizade tão amiga, de total confiança, quanto o cachorro tem com ele. Vinícius de Moraes, o nosso poetinha, que navegou tantas canções, e adorava uísque, afirmava que o uísque era o cachorro engarrafado, numa alusão à íntima e intensa relação de amizade que mantinha com a bebida escocesa, e esta com ele.
O que quero, a bem da verdade, é falar de dois interessantes personagens, que, de repente, surgiram como se saíssem da página de um conto: Barba, o mendigo, e Negão, o cachorro – vira-lata que fora abandonado e resgatado na Feira de Tradições Nordestinas de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Todo mundo sabe, sem necessidade de ostentar resquício de intelectualidade, ou de conhecimento do mundo, que essa feira é uma extensão do Nordeste no coração da Zona Norte do Rio. Por algum tempo, trabalhei e morei naquelas imediações. Quase todos os dias, me deparava com Feira de São Cristóvão e suas coisas bem nossas. Circulando, havia os costumeiros cachorros, com ou sem donos. Nunca me chamavam a atenção. Já Negão, o acima citado, despertou-me a curiosidade de conhecê-lo.
Resgatado por Barba, que o alcunhou de Negão, o mendigo benfeitor, morador de rua, passou a tratá-lo como companheiro de vida, acolhendo-o na sua rústica morada estelar. Deu-lhe atenção, carinho e amor. Negão é tratado de modo especial. Não dorme ao relento. E, embora não usufrua da comodidade de um hotel de cachorros, com a regalia de alimentação balanceada, mata o sono em uma cama, com direito a cobertor, ração e dois vasilhames com água limpa. Não ficou claro em que circunstâncias são feitas as suas necessidades fisiológicas. Mas isso tem pouca importância, pelo menos, para ele, que consome uma parte substanciosa do faturamento mensal de Barba, despendida na aquisição de ração e com limpeza e higiene. Um luxo só!
Barba e Negão – este tal qual o cachorro do filme, que envelheceu e morreu, esperando o seu dono na estação ferroviária – são o grande modelo de uma amizade construída entre um homem e um animal, para negar a suposta verdade de Valéry de que um homem sozinho está sempre em má companhia. As carências afetivas entre os dois se completaram. Barba, nascido na terra de Rui Barbosa, tem uma experiência de 37 anos de morada ao ar livre. Tentou livrar-se de Negão, devolvendo-o para o agradável regionalismo da Feira de São Cristóvão. Não teve êxito. “– Eu tentei levá-lo de volta à Feira, mas quando o deixei lá, ele veio correndo atrás de mim. Ele não queria mais ficar lá e me seguia para todo o lado.” Repetia com ufanismo o registro dessa amizade de dois seres que se amam e se completam nas suas carências e no acolhimento. Só resta este final: Viva Barba e viva Negão! Personagens desta crônica dedicada ao encontro entre um homem e um animal, que se amam com fidelidade canina, sem prazo de validade e sem interesses negociados.
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