Conflito

Afinal, quem são os Gamela?

O Imparcial buscou as raízes do conflito ocorrido entre indígenas e produtores rurais no último domingo (30) no município de Viana

Reprodução

‘Indígenas altos, de cor clara, com adereços labiais de sete a dez centímetros, similares a pratos, nos quais eram colocadas comidas e bebidas’. Assim são descritos os índios Gamela nos estudos do etnógrafo alemão Curt Nimuendajú, em 1937. O povo, hoje considerado extinto pelas autoridades – não há dados sobre a etnia no Censo do IBGE de 2010, nem em levantamentos da Funai –, possui uma longa história de migração, miscigenação, dispersão, extermínio, reorganização e confrontos, o que tem causado confusão quanto à sua identidade étnica e levado não nativos a desconsiderá-los como indígenas. Um erro, segundo especialistas.

De acordo com Curt, as primeiras menções aos Gamela aparecem nas ‘Crônicas do Piauí’, do historiador e político Pereira de Alencastre. Segundo a publicação, os Gamela, que viviam nas proximidades da região do Parnaíba e do Piauí, migraram em 1713 para o Maranhão, onde chegaram a ocupar a área entre Bacabal e foz do Rio Grajaú.

A migração continuou: foram identificadas, em meados do século XVIII, duas tribos dos Gamela no estado: uma localizada em Codó (extinta em 1956), e outra na área dos lagos de Viana e Penalva (que não chegou a resistir até o início do século XX). No entanto, ainda de acordo com o estudo, há a hipótese de que os dois grupos poderiam ter sido povos distintos que apenas compartilhavam de costumes parecidos.

GENOCÍDIO E MISCIGENAÇÃO

Depois do século XIX, poucas tribos sobreviveram, e os Gamela, segundo estudos, não estão – ou estavam – entre elas. Curt Nimuendajú visitou, no final da década de 1930, o último povoado em que os Gamela ‘originais’ foram reportados, no oeste do Lago Capivari, localizado nas áreas de Penalva e Viana, onde o último chefe da tribo, Julião, havia morrido por volta dos 80 anos. De acordo com Curt, “os últimos indivíduos minimamente ‘puros’ já haviam falecido, e a última mulher que reconhecidamente possuía ‘sangue misturado’ era capaz de fazer um uso extremamente básico do dialeto Gamela”.

Entre os anos 1930 e 1940, de acordo com a pesquisa, apenas algumas famílias preservavam a tradição de descendentes dos Gamela. A miscigenação ocorreu quase exclusivamente com afrodescendentes que residiam nos entornos do Capivari. Para Curt, “as características negras sobrepunham as características indígenas Gamela, apenas três ou quatro indivíduos ‘descendentes’ do povo revelavam traços indígenas”.

Ainda de acordo com o etnógrafo, “os moradores da região, ‘descendentes’ dos Gamela, falavam não mais o dialeto da tribo, que havia se perdido quase completamente, mas um português rural”. Para ele, a cultura material do povoado não revelava nenhum traço que os distinguia dos vizinhos que não possuíam nenhuma conexão com os Gamela. Suas características não preservavam nada das heranças indígenas, e suas visões sobre os indígenas [Gamela] eram “fantasticamente tão incorretas quanto aquelas dos ‘neo-brasileiros’ do local”.

REORGANIZAÇÃO

Do início do século XX aos anos 1970, os povoados provenientes dos Gamela permaneciam ocupando a região. Um ofício de 1784 da coroa portuguesa afirma, de fato, que os Gamela são os legítimos proprietários das terras que ocupavam 10 mil hectares em Viana. No entanto, as autoridades brasileiras atualmente consideram o povo extinto.

Para os povos que descendem dos Gamela e vivem hoje em cerca de 500 hectares – o que se deve, segundo os moradores, a um processo de loteamento e registro cartorial realizado em nome de produtores rurais –, a etnia nunca deixou de existir. Em agosto de 2013, foi realizada uma assembleia entre povoados de Viana, em que foi deliberada a autodeclaração dos moradores enquanto Gamela e o início do processo de retomada do território concedido, há séculos, pela coroa portuguesa. A partir de então, sem esperar pela Funai, o povo passou a avançar em ocupação territorial e destruir as cercas colocadas por produtores rurais – o que ocasionou, inevitavelmente, uma série de conflitos entre duas partes que se autodenominam donas da mesma poção de terra.

De acordo com a antropologia, esse processo de autodeclaração compõe algo mais complexo: a ‘etnogênese’ ou ‘ressurgimento’. O movimento diz respeito ao surgimento de novas identidades étnicas ou do reaparecimento de etnias já conhecidas, dadas por extintas.

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