BASTIDORES

Pedro Rico

Pedro Rico. Cor branca. Pele alvacenta. Parecia político, com jeito de deputado. Daqueles que usavam calça de linho branco, e bem engomada. Ria que ria. O riso, sempre espontâneo. Demonstrava ter posses. Ou no vestir ou no falar. Sempre de branco. Camisa e calça de uma alvura que o distinguia dos outros Pedros. Tinha o […]

Pedro Rico. Cor branca. Pele alvacenta. Parecia político, com jeito de deputado. Daqueles que usavam calça de linho branco, e bem engomada. Ria que ria. O riso, sempre espontâneo. Demonstrava ter posses. Ou no vestir ou no falar. Sempre de branco. Camisa e calça de uma alvura que o distinguia dos outros Pedros. Tinha o respeito. Da roupa e do riso cativante. E de ser Pedro, com o acréscimo de Rico. Talvez pela roupa branca, ou por ser branco, ou por apresentar-se com jeito de ter posses. Passava e dizia, com entusiasmo: — Quero te ver doutor! — Seu refrão preferido. Repetido e repetido, como se tivesse feito uma promessa a São Pedro, seu santo protetor, como fazia questão de confessar aos mais chegados. O compadre Vicente, seu vizinho de porta e janela.

Pedro Rico. Homem bom. Irradiava essa virtude. No riso, ressai o brilho do dente de ouro. Com sua camisa e calça brancas, alvinhas, subia de manhã a rua, com seus buracos, regos, por onde a água estava sempre a escorrer. Roupa engomada, passada no ferro a brasa, refletindo o lustro da goma. Nunca fez mal a ninguém. Finda a tarde, retorna, com a pontualidade de sempre, em passos apressados.

As línguas da rua não o poupam pelo seu pecado venial que se tornou mortal: gostava de jogar – a dinheiro – o carteado. Era o seu prazer. Quer perdesse, quer ganhasse.

Sem mulher, sem filhos. Residia numa porta e janela, ao lado do compadre Vicente, dono de um açougue da feira da Macaúba, que fora instalada num grande largo do final daquela rua infinita (e lá se foi o campo de futebol!), e a limitar-se com as águas do mar, que na maré de lua invadia a Vila. Compadres e amigos. O compadre sempre o alertava do vício do jogo. Pedro Rico pouco ia jogando. Seu único vício. Sua sina, seu lazer. Sua prece diária. Jogava com o seu dinheiro, que ganhava no trabalho árduo do dia a dia. Pouco ou nada se sabe do seu trabalho. Diziam: vendedor de barril de flandres. Diziam?!. Dá bom dinheiro — confirmam os mais informados. Sua vida tem uma parte desconhecida. Anônima. Ainda assim, perscrutada por aqueles que se interessam em saber e falar. A rua tem dessas coisas. Há versões e invenções.

Educado. De educação branca como as suas roupas brancas. — Bom dia! — Boa tarde! — E vai passando, carregando a sua magreza e os seus modos civilizados.

De certa feita, disse ao compadre Vicente: — Tive um sonho, compadre. Um sonho ruim, pressagioso. Sonhei vendo o meu próprio corpo estirado no meio da casa. E o compadre, de pronto: — Que é isso?!, compadre, é só um sonho. O compadre se apega no jogo. Fica ensimesmado. E acaba sonhando essas coisas bestas.

— Quero te ver doutor! — insistia no refrão predileto, ao passar apressado pela rua. Os olhos das mulheres o acompanhavam. Tem preferência. O mundo lhe parecia sem problemas. Talvez por estar só. Numa casa de porta e janela, quase na esquina da rua. Na janela, debruçava-se, vendo as pessoas que passam. Um cumprimento pra uma. Um sorriso pra outra. Com o dente de ouro a sobressair, como um amuleto a exibir suas posses.

— Donde viera, perguntavam os mais curiosos, sem obter resposta. — Do Ceará? Da Paraíba? Das Alagoas? Donde? — insistiam os mais curiosos.

Não tinha mulher nem amante. Vivia numa porta e janela. Estreita de frente. Muita comprida de fundos. Detinha o respeito da posse que aparentava ter.

Numa tarde de chuva. Daquelas chuvas intermitentes. Que não param nunca. Chuva que molha, mas que acabrunha. Dia de ficar na janela, olhando o tempo chuvoso. Um dia incomum.

Da janela, o grito lacinante e tenebroso: – Mataram Pedro Rico! Como?! De faca. Muito comum o uso da faca para matar o desafeto. Pedro Rico, homem de índole boa, educado, foi vitimado pela desavença do jogo. Na mesa, jogando baralho, o contendor lhe disse, com tanta convicção: – Vou te matar! Ele não acreditou. Levou na troça. Terminado o jogo, tarde chuvosa e de maus presságios, saiu no rumo de casa. Entrou. Fechou a porta da frente. Seu desafeto lhe veio na pegada. Bateu-lhe à porta. E aguardou na espreita da janela, de altura média. Pedro Rico veio à janela, ficando sobre ela para ver quem era. Foi o momento da facada. Uma única facada. Fatal. De cima pra baixo. Aplicada com destreza, penetrou no lado esquerdo do pescoço, no vão da clavícula, atingindo a jugular. Não houve escapatória. Faqueado, Pedro Rico, de branco, avermelhou. Saiu pela rua. E dizia para o seu compadre Vicente, que corria para socorrê-lo: — Me matou! O sangue a esguichar pra longe. O chão molhava. A chuva não cessava. Da casa à esquina era só sangue. Poças de sangue. E repetia na sua caminhada trôpega: — Me matou, compadre! O sangue a espirrar, em esguichos. A rua lavada de sangue. A morte desenhada nas suas passadas cambaleantes e na ânsia infrutífera de parar a sangreira, que lhe brotava da ferida que o matador lhe impusera, quando lhe meteu a faca no lado esquerdo do pescoço. O medo estampado no rosto das pessoas. Olhavam e não acreditavam. Pedro Rico tropegava e gemia com a morte cruel que, em galope, se aproximava. Puseram-lhe num carro, e, ao chegar às portas do Pronto Socorro, na rua do Passeio, dava o último suspiro. Esvaiu-se todo o sangue. A morte tornou ainda mais mórbido aquele dia chuvoso e com ares de tristeza.

Assim era a morte matada daqueles dias. Pedro Rico morreu da sua sina de jogador, mas preservou o amor da sua imagem de um homem de bondade. A morte matada não se compadecia de ninguém. Era, ainda que seja paradoxal, parte cruel da vida.

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