SÉRIE

Universo do Reggae: O Melô da Valéria

Na primeira edição, é contada a história de como a música My Mind acabou virando o Melô da Valéria na capital maranhense em homenagem a Valéria Veluz

Valéria Veluz na Itamaraty (Acervo Maurício Capella)

Um reggae é um reggae, um melô é um melô, uma pedra é uma pedra.

Nem toda pedra é um melô, nem todo reggae é uma pedra, nem todo melô é reggae, mas todo melô que se conheça pelo nome é pedra.

Uma pedra é aquela canção que pesa como tal, ressoa na cachola do regueiro e é ele quem a reconhece, pede e dança; melô é como os radioleiros e djs de reggae passaram a batizar certas músicas, por vários motivos: esconder a verdadeira identidade de um fonograma pra evitar que a concorrência tivesse acesso, homenagear alguém, facilitar a compreensão do regueiro: afinal, “Some of them are wolves”, refrão cantado por Lloyd Parks, era meio complicado pra ligar e pedir pra Carlos Nina tocar no Reggae Dance; acabou virando o Melô de Ademar.

Cada melô tem uma história. Uma vida, na verdade. Composta em um contexto, gravada, tocada em shows, eventualmente deixada de escanteio até um curioso maranhense aportar em Kingston, achar uma bolachinha, trazer pra cá e a ressuscitar.

Esta série de 12 “biografias de música” vai contar a vida de 12 melôs de reggae clássicos na Jamaica Brasileira, da sua vida na Terra das Primaveras, até sua segunda chance na Ilha do amor.

Mas vamo que vamo, que agora é na lei da Jamaica!

Melô de Valéria

Valéria senta num bar da Rua da São Pantaleão às 10 da manhã. Sentamos. Foi difícil encontrá-la.

— Quero beber uma cerveja – ela diz, de cara.

Pedimos uma Heineken e digo que não vou beber. Sou professor. Preciso estar em sala de aula em algumas horas e acho melhor…

— Lá tem bafômetro? – ela corta!

Valéria Veluz
Foto: Bruno Azevêdo

Com vocês, Valéria.

Valéria Pereira Lopes, ou Valéria Veluz (o nome ela tomou emprestado de um disco de Carlinhos Veloz) é a titular de um dos mais famosos melôs de São Luís. Uma festa de reggae que não tocar o “Melô de Valéria” vai parecer incompleta. O começo de batidas rápidas seguido da frase de guitarra de My Mind, gravada em 1976 por Hugh Mundell, já dispõe os corpos pra dança, seja no Nelson, seja num bar da periferia que toca robozinho. A história desse melô diz um bocado de como desenvolvemos desde cedo uma forma própria de tratar o reggae.

Em 1980, Manoel Francisco Santana, o Chico do Reggae, era militar e viajou pro Rio de Janeiro. Já era aficionado por música e colecionava vinis. Lá, ouviu falar de um fã clube de Bob Marley, encabeçado pelos irmãos Mariano e Marino. Os dois trabalhavam na Varig. Mariano era amante de reggae e viajava sempre pra Jamaica. “A gente não sabia de nada aqui, entendeu, e Mariano já tinha uma vasta coleção de discos, muito disco”, diz Chico. Mariano gravava fitas dos seus vinis a 30 cruzeiros cada. Chico encomendou algumas, “dentre elas veio Makombi, veio alguns Gladiators, Wailling Souls, Max Romell, e veio esse disco gravado todinho do Hugh Mundell, My mind”.

Chico foi um dos nossos primeiros investidores do reggae. Comprava e vendia canções onde encontrava. Fez uma seleção do material de Mariano e dentre elas estava My Mind, que na época não tinha nome nem nada, era uma música que o discotecário tocou à fulote no Toque de Amor, “só eu tinha na época. Na época eu toquei, toquei, toquei então ela foi fazendo sucesso, então quando se tocava, na década de 80, essa música, todo mundo dançava, todo mundo gostava, ninguém sabia quem era que cantava na época. Muita gente procurava essa música, “Chico, grava pra mim”, e eu nada de gravar, porque naquela época a gente escondia até rótulo de disco, riscava o disco, trocava de capa pra ninguém saber. E como eu não tinha o disco, Mariano gravou apenas a música pra mim. Não vou dizer aqui que eu tinha o disco de Hugh Mundell, My Mind (…) quando foi já na década de 90. Aí sim, foi as nossas primeiras viagens, que nós fizemos pra Jamaica. Aí lançaram como Melô de Valéria e começou tocar nas Radiolas”, explica.

Som dos Astros

Entre o Toque de amor dos anos 80 e o Melô de Valéria da metade da década seguinte, My Mind ganhou seu primeiro nome maranhense, mais uma vez com a participação de dois irmãos. Robson e Josias Medalha tinham uma pequena radiola chamada Som dos Astros, também faziam corres como djs em diversos salões e radiolas numa São Luís cujo reggae ainda não era essa mercadoria consumida pela classe média. De uma família de 12 irmãos, seis são djs. Josias Ribamar da Silva teve o Medalha adicionado ao nome pelo maior batizador de personalidades do reggae do Maranhão: Fauzy Beyboun. My Mind se reproduzia aos poucos, numa mitose de fitas cassete, “bem gravada, que era aquela fita cromo, aquela fita preta, que é uma qualidade boa. Basf Cromo. E os tape era aquele que a gente regulava com uma chave de fenda. Quando passava pra outra saía bem gravada, que tinha tape que não regulava. Então nós tínhamos um só pra regular, pra passar para um tape chamado Akai”.

O jovem radioleiro conseguiu sua Basf Cromo com My Mind, reproduzida de Chico do Reggae, por meio de uma figura obscura chamada Sarney, que frequentava as festas nos anos 80, foi dj da Som dos Astros, e hoje ninguém sabe dar notícias: “a gente pegou essa música. Comprou essa música. Quando tocava o salão inflamava. Ainda tinha pouco esse negócio de melô, aí ‘rapaz, vamo botar o nome da radiola?’; ‘vambora’. Aí nós levamos essa música pra Carlos Nina, do Reggae Dance, antigo. Aí nós tocamos no Coroadinho, tocamos na Alemanha… nós fizemos o pontapé lá no Palmeira Som, lá que começou o sucesso dela, foi lá, no Palmeira Som”.

Numa época na qual as pequenas radiolas disputavam espaço e mercado, ainda não tomado pelas grandes, a Som dos Astros se envolveu numa disputa com a Raízes do Reggae, de Pedro Sardinha, com a qual reversava semanalmente o salão, “nós ganhamos a disputa, justamente com essa música. Ele tocava, enchia, a gente tocava, enchia… então Prego, que era o dono do clube, chegou e falou ‘agora vai tocar vocês dois junto, pra gente ver quem é a maior preferência do povo’. Nós ganhamos por 100 votos, e tinha pra mais de 400 pessoas no salão. Essa música já começou dando título pra gente”, me contou Josias por telefone, enquanto ia pra Rosário, onde hoje mora e trabalha como dj e radialista. O Melô do Som dos Astros continuou se reproduzindo, agora com mais um agente, “levei pra Carlos Nina… nesse tempo eu dei pra Sandoval, dei pra Toinho Rocha, e pra turma que pedisse, eu passava”.

Nessa turma estava um outro dj e radioleiro, Natty Naifson.

Enquanto My Mind fazia sua adolescia na Ilha, Valéria empubescia no Monte Castelo, onde chegou aos 10 anos, 7 anos após o desembarque de Chico com sua Basf Cromo. A menina explorava e estranhava a cidade, nem tchuns pros bastidores do reggae. Tinha uma opinião comum à juventude de classe média da época, ecoando a má fama fomentada pela mídia local: “no começo da adolescência a gente é muito influenciado, né?… mas onde a gente passava parecia que era um eco o programa de Carlos Nina, um negócio incrível! Mas aí as pessoas falavam, ‘ah, isso aí é coisa de preto, coisa de marginais e tal, não sei o que’, e eu fiquei com aquilo na cabeça, isso aí eu tinha o que… uns 12 anos, né?”.

Valéria nasceu em Santos em 1976, filha de uma arariense e um santista. Veio para São Luís em 87, mala e cuia pras férias, “que nunca acabaram”, está há 30 anos de férias no Maranhão. O pai perdeu o emprego e a família veio tentar a sorte na terra da mãe. Terminou os estudos e trabalhou como dançarina por 12 anos na Companhia Cazumbá, enquanto morava no Desterro. Também é artista visual e artesã, atividades que intercala às aulas de dança. Valéria fala com frases ágeis e argutas, não é difícil entrar em sintonia com ela. Nem a história terrível da fratura de uma tíbia, num atropelamento que a deixou dois anos parada, lhe tira o humor. Demorou pra quebrar o preconceito com o reggae, “quando a gente passava ali na Igreja da Conceição tinha o festejo de Nossa Sra. da Conceição… tinha, não, ainda tem. E na época tinha uma quadra, do lado onde hoje é uma escola, e eu ouvi essa música pela primeira vez, chamada o Melô dos Astros, My mind, e aí eu gostei”.

Pergunto qual seu melô predileto e ela se atrapalha, “daqui há pouco eu lembro”. Dois dias depois, me liga: “Melô e Catiroba”. E ri.

Parece ironia que Valéria tenha Catiroba como melô predileto. Todos os depoimentos que colhi sobre ela falam de um cometa que descia nos salões. Não dava pra não olhar. Um amigo, músico, frequentador de salões desde os anos 80 me falou que, “ficar perto dessa mulher… cara, ela era a personalidade do reggae. É impressionante! Era A mulher do reggae… era Valéria chegou… o cabelo parecia uma cascata negra, era de parar o trânsito. Chegava aos reggaes dançava sozinha, na dela, saca?, não dava a mínima… dançava, dançava, dançava e ia embora. Foi certamente a mulher mais linda que eu vi no grande período que eu passei andando em reggaes”.

Não era só a beleza que destacava Valéria. Enquanto os salões começavam a passar pela transformação que a jornalista Karla Freire, em seu “Onde o reggae é a lei” chamou de “reggae de salto alto”, a moça corria mundo nos clubes calorentos de periferia, com piso de terra batida, banheiros no mínimo insalubres; andava em festejos de interior, em lugarejos minúsculos, sempre atrás das radiolas, pra Valéria parece nunca ter havido um carnaval triste. Também andou pela Jamaica e esteve no backstage de muitos dos grandes shows dos anos 90. Fala de My Mind como quem conhece a letra e a mensagem, cita trechos. É frequentemente descrita como uma mulher de atitude e boa de papo, de gênio muito forte, determinada, incapaz de levar um desaforo pra casa. No bar da São Pantaleão ela me diz que “as mulheres ficavam muito enciumadas. Há 20 anos e 20 quilos atrás eu fazia bastante sucesso, tava em todo lugar, trabalhava com dança…”. Como mulher branca de classe média no reggae quando elas eram raras, foi várias vezes chamada de patricinha, “eu era meio arruaceira também, porrada e tal… saí na porrada várias vezes. Era com homem, era com mulher, não tinha tempo ruim não, descia o braço mesmo… tinha muita gente sem noção também”.

Começou a frequentar os salões aos 16 anos, em 92, e não parou mais, “esse ano fiz bodas de prata no reggae”. Não tardou a conhecer a radiola de Natty Naifson, já de posse de sua Basf Cromo, descendente da de Josias Medalha. Começou a acompanhar o dj. “Eu ficava pedindo esse reggae pra ele. Eu ficava pedindo esse reggae pra ele direto, onde eu trombava lá na festa com ele eu pedia, ‘bota o Melô dos Astros’, chamava-se Melô dos Astros. Muita gente tinha, fez um grande sucesso nesse período que eu tô te falando, dos 12 anos, como Melô dos Astros. Como eu pedia muito, um dia eu cheguei lá no Clubão da Cohab ele jogou, né?, disse ‘agora relançando o Melô dos Astros como Melô de Valéria’. E pegou, cara. Pegou e até hoje me rende boas cervejas!”.

Naifson relembrou essa noite: “ela frequentava muito minhas festas nos anos 90. Primeiramente essa música era o Melô do Som dos Astros, era a radiola de um colega meu chamado Josias Medalha. Só que ele colocou esse nome e não vingou muito, entendeu. Aí eu tocava muita música, né, nos anos 90, e ela acompanhava muito a radiola. Aí eu resolvi homenagear ela. Eu procurei essa música e disse, ‘rapá, eu vou transformar essa música, vou colocar Melô de Valéria’, aí eu chamei ela e disse, ‘olha, eu vou colocar uma música, teu melô’ e ela ‘não… tu vai colocar?’, eu digo ‘vô! Vô sim!”, aí eu peguei e coloquei, Melô de Valéria. Aí todo mundo começou a tocar e a música pegou. Ela se destacava muito diante as outras meninas, porque ela chegava nas festas dançando e tal, ficava todo tempo dançando, do começo ao final. Muitos observavam ela, muito bonita ela. Aí eu coloquei o melô pra ela. Ficou até hoje”.

A canção não era exclusiva, como muitas, mas seu rebatismo parece ter conferido uma vida nova. Junior Black, dj e radioleiro, me confirmou que Som dos Astros já não atraía tanto o regueiro. O caso do Melô de Valéria, como outros, reforça o poder que tem a forma Melô no reggae do Maranhão. Naifson, segundo Valéria, ainda lhe dedicou outras duas canções, mas não vingaram como a primeira. Fato é que as novas gerações, como a minha, não a conhecem pelo nome anterior.

Josias Medalha torceu o nariz à mudança: “quando eu saí de lá pra cá pra vim pro lado de Rosário, já no começo, comecinho lá pro meio dos anos 90, em 98, quando eu acabei com a Radiola que eu me injuriei, dei uma zanga lá, eu vendi os pedaços. Como a radiola já tava fora de roteiro, como o meu nome tava incomodando demais, que eu tava entre eles, pelo menos no nome, não no tamanho, pra apagar o nome da radiola ele botou o nome de Valéria”. Josias ainda toca o melô, mas nunca o apresenta pelo novo nome. Pra ele, o regueiro das antigas não aceitou a mudança. Ainda assim, concorda que com Valéria a canção cresceu, “chegou em outra geração”. Medalha e Naifson, a despeito do melô, tocam juntos em várias festas até hoje.

Há muitos burburinhos sobre essa música. Dentro do terreno de disputas do reggae local, no qual djs e donos de radiola travam uma guerra fria constante, raramente abrindo o conflito, ser o “dono” de um melô é grande coisa. Corre à ilha que o Melô de Valéria foi batizado pelo dj Antônio José, da Estrela do Som, versão ventilada por alguns dos meus entrevistados. Contudo, Valéria, Naifson, Josias Medalha, Maurício Capella e outras fontes apontam o dono da FM Natty Naifson como o autor da façanha. Não é difícil entender o porquê do boato: assim como Fauzi era batizador de personalidades, Antônio José era batizador de Melôs, e tinha um faro singular pra dar nome aos bois. Valéria comenta o assunto com uma história: conversando com Sandra, filha de Ferreirinha, radioleiro, dono da Estrela do Som, “ela pegou uma bolachinha, um compacto. Aí mostrou lá, tava escrito, de caneta, com a letra de Antônio José [Melô de Valéria], aí eles acham que foi Antônio José que lançou… mas acho que ele tinha lá, e como já tava fazendo sucesso ele colocou lá, né, pra identificar”.

My my

Paro pra escrever esse texto. My Mind tocando no celular pra dar ideias. Estou na sala dos professores quando entra a secretária da coordenação. “Esse é meu melô e de Augusto, um cara que eu conheci no reggae. Foi quando essa música tocou que a gente se beijou… deixa tocando…”.

Deixo e pergunto se ela sabe o nome do cantor.

— Não. Nem sei se é homem ou mulher.

Não é só ela. O antigo dono da Som dos Astros não desconhece só Valéria. Até hoje não faz ideia de quem compôs e interpretou o melô que lhe fez a carreira. Josias Medalha nunca ouviu falar em Hugh Mundell…

Mas vamo combinar que a esmagadora maioria dos regueiros que se gruda ao crush da noite quando a música toca também não sabe. Um melô é uma canção sem artista.

Hugh Christofer Mundell nasceu numa família bem das pernas em 1962, ano da independência da Jamaica. O pai era advogado. Menino prodígio, aos 12 anos, na escola, já fazia suas primeiras letras. A cena roots jamaicana estava efervescendo e a música era uma possibilidade de vida promissora à juventude do país pobre. Mundell gazeava aula pra tentar gravar suas músicas e acompanhar o movimento dos estúdios, sempre disputadíssimos. Numa dessas visitas ao estúdio de Joe Gibbs, foi recusado. Um dos músicos comentou que Mundell deveria voltar quanto atingisse a puberdade. Seria mais uma porta fechada se naquele dia não estivesse por lá um dos grandes magos do reggae, Augustus Pablo. Começava ali uma relação que definiria a carreira de Mundell e mudaria sua vida “pessoal, profissional e espiritual”, como escreveu o jornalista americano Michael Watson, AKA Jah Raver, no artigo “Great Tribulations: the life and times of Hugh Mundell”.

Sua primeira gravação foi ainda para Gibbs. “Where is Natty Dread” nunca foi lançada. Sua primeira parceria com Pablo como produtor foi também seu maior sucesso: “Africa must be free”, primeiro single da carreira. Naquela mesma sessão gravou outra canção, “My My”, também lançada como single. Posteriormente, “My My” teve o nome alterado para My Mind, quando foi lançada pelo selo Rockers International, de Pablo, e teria somente esse nome até Josias Medalha e Natty Naifson aparecerem na jogada. Mundell tinha 14 anos, ou 13. Não achei informações do mês de gravação. Mundell, segundo Pablo “simplesmente largou a escola e começou a gravar”.

Dono de uma voz muitas vezes descrita como angelical, Mundell tinha letras de forte cunho político, alinhado às ideias rastafári em voga naquele momento, antes da ascensão do dance hall. My Mind tem tons oníricos, com o menino viajando em seus próprios pensamentos. A letra diz: “Eu sento e penso um pouco, minha mente viaja mil quilômetros, pensando na luz do sol, que seca minhas rupas no varal, pensando, pensando na chuva, que bate na minha janela, e nos pecadores, que dizem ‘meu deus’ em vão”.

A religião era importante para Mundell, assim como as questões referentes ao capitalismo, à emancipação negra e à África. Era ainda uma criança escrevendo sobre temas complexos. Seu maior sucesso dizia que a África haveria de libertar-se no ano de 1983. O verso foi tirado de um discurso do imperador Haile Selassie I, o imperador etíope visto como messias pelos rastafari. A canção ficou famosa na África do Sul e é referendada como uma das grandes músicas anti-apartheid, como cita Max Mojapelo, em seu “Beyond Memory: recording history, moments and memories of South African music”; para Jah Raver, a canção “teria participação perpétua nos movimentos sociais pela abolição do apartheid na África do Sul”. Mundell não evocava deus em vão.

A letra de My Mind prossegue… “Minha mente fica viajando, enquanto canto minha musiquinha, pensando naquela menina que me deixou. Pensando na minha mãe, e no meu pai também, pensando nas minhas irmãs e também nos meus irmãos, pensando na minha vida e na minha futura esposa. Minha mente fica viajando”. Augustos Pablo e Mundell seguiram trabalhando juntos. Gravaram outros singles, que depois seriam compilados em “Africa must be free by 1983”, lançado em 78, com arranjos de Pablo. O disco é um clássico absoluto do reggae. Era uma dupla prolífica e elogiada, o rapaz tocava nos shows de Pablo e era visto constantemente ao seu lado. Mesmo após um rompimento, em 1980, quando Mundell se tornou um artista independente, os dois continuaram mantendo relações profissionais. Mundell atuava também como dj, compositor e percussionista. Cantava como Hugh Mundell e botava som como Jah Levi. Começou um selo, o Mun Rock, pelo qual lançou alguns artistas.

Mas o cantor não era um cara fácil. O jornalista inglês Roz Reines o definiu como um “iceberg humano” ao tentar entrevistá-lo, o artista era uma espécie de Tim Maia do reggae, furava shows, desmarcava em cima da hora e renegociava contratos já firmados. Na sua primeira turnê americana, em 1981, o produtor Jerry Stein, seu fã, preparou uma surpresa: três câmeras de tv filmariam o show, algo raro e caro para um artista jamaicano. Stein queria presentear o jovem cantor, cujo pai lhe tinha escrito pedindo que cuidasse do filho nos EUA. Na passagem de som, ao se deparar com o aparato televisivo, Mundell começou uma briga, disse que não faria o show. Aparentemente, queria dinheiro. Stein desmontou tudo e o show aconteceu. É possível ouvi-lo no YouTube hoje.

Nesse e noutros shows de Mundell disponíveis na internet, My Mind não consta no setlist. Mesmo fazendo parte do seu maior disco, a canção parece não ter sido muito trabalhada pelo artista, nunca saindo de seu lado B. É comum que uma canção seja famosa no reggae maranhense e não tenha sucesso algum na Jamaica. As sensibilidades são distintas. O Melô dos Astros não acende uma entrelinha na Jamaica, pelo jeito.

Mundell gravou mais 4 discos e vários singles. Como Valéria, não levava desaforo pra casa. Certa vez, foi visitar a mãe em Montego Bay. Ao voltar, descobriu que sua casa tinha sido arrombada, alguns eletrodomésticos da cozinha foram roubados. O suposto gatuno era conhecido da área e Mundell, acompanhado do cantor Junior Reid, que havia lançado por seu selo, foram tomar satisfações. Tentou reaver os objetos, mas não houve avanços na negociação, “o cara fingia não saber nada à respeito”, disse Reid numa entrevista em 1985. Mundell convence o suspeito a entrar no seu carro e o leva a polícia, onde é detido.

Dois dias depois estavam Reid, Mundell e sua esposa no carro. Foram receber um pagamento. Ao sair, um homem se aproxima do carro com sangue nos olhos. É irmão do acusado. Pergunta onde está o irmão. “Está sob custódia e não vou soltá-lo até que ele devolva minhas coisas”, disse Mundell, ao volante. Os dois discutiram, o cantor começou a sair do local. Rodrigo Codrington, o irmão, sacou uma arma e apontou para a cabeça da esposa de Mundell. Mundell dá partida, o carro engulha, mas se move, o atirador sai da frente e fica ao lado do carro, no lado oposto ao de Mundell, que tentava acelerar. De lá, atira, a bala lambe a janela do carona, passa por Reid e atinge o cantor de voz angelical na cabeça.

Era 1983, ano da previsão da libertação da África em sua canção.

Tinha 21 anos.

Bruno Azevêdo é escritor. Além desta série, trabalha em um livro sobre os dias de Gregory Isaacs no Maranhão.

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